Blog da Parábola Editorial

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Uma perca de tempo

blog Conhecer a história da língua nos permite olhar de forma diferente para o que muita gente considera “erro”.

As cantigas de amor, de amigo, de escárnio e maldizer são uma fonte riquíssima para o estudo da história da língua que hoje falamos (e que, é sempre bom lembrar, só passou a se chamar português lá pelos idos de 1450 — se você já ouviu falar de uma língua chamada galego-português, sinto informar que ela nunca existiu, mas isso é para outro dia). Nesses gêneros poético-musicais produzidos há mais de setecentos anos, ocorrem certas fórmulas que se repetem com frequência na pena de mais de um autor. Uma dessas fórmulas, presente em diversas cantigas de amigo, é “eu perço meu sem”, em que sem significa “senso, juízo, razão”. A mulher, distante do amigo, se vê muito coitada (sofrendo coita, isto é, aflição, desgosto) e quase perde a razão. Mas o que me interessa aqui não é o sem, é o perço. De onde é que vem essa cedilha em perço? Na perspectiva histórica, a pergunta tem de ser outra: por que perço perdeu sua cedilha e hoje dizemos [eu] perco? Se a forma perço é mais antiga, o que aconteceu no caminho?

Em latim, a primeira pessoa do presente do indicativo do verbo perdĕre era perdo, mas tudo leva a crer que, no noroeste da Península Ibérica, esse perdo se transformou em *perdio, origem de perço, porque os grupos latinos -dio e -tio se transformaram regularmente em -ço (audio > ouço; petio > peço). A forma [eu] perço, portanto, se explica facilmente pelas regularidades das mudanças fonéticas, de modo que [eu] perco é que é o “corpo estranho” nessa história. Como é que se pode explicar então a passagem perço > perco?

Palavras antônimas costumam vir emparelhadas em diversas fórmulas habituais na língua, de modo que os pares ir e voltar, dar e receber, nascer e morrer, amar e odiar etc. ocorrem com muita frequência. No caso de perder, um de seus antônimos, sobretudo em contextos bélicos, é vencer: um exército pode perder ou vencer uma batalha, por exemplo. Hoje em dia é mais comum opormos perder a ganhar, mas na língua medieval ganhar ainda não tinha adquirido o sentido que hoje tem de “obter vitória sobre algo ou alguém”, que é uma extensão metafórica de “receber, adquirir, conquistar”. Pois bem, o latim vinco se transformou, de forma previsível, em venco, de modo que a conjugação do verbo era eu venco, tu vences, ele vence, nós vencemos etc. É essa forma venco que “contaminou” a forma perço, transformando-a em perco: “Eu perco esta batalha, mas venco a guerra”.

Agora vem outra pergunta, bastante lógica: como é que venco, por sua vez, se transformou em venço? Muito simples: por analogia com o resto da conjugação: vences, vence, vencemos etc. Depois de ter colaborado para transformar perço em perco, nosso amigo venco resolveu se adequar melhor à própria família e adotou, vejam só, um ç... O que era perço virou perco, o que era venco virou venço.

A forma eu perco surgiu, portanto, de um “erro” cometido pelas pessoas que fizeram a associação analógica com venco, e é bem provável que a geração mais antiga que dizia perço tenha torcido o nariz para o perco, usado pela juventude, sempre acusada de “arruinar” a língua. O mesmo vale para venco que, sofrendo a concorrência de venço, acabou sendo abandonado pelas gerações mais novas, que levaram adiante a forma “errada” até fazer dela a única “certa”.

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'Você' e 'eu' não somos pronomes

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A história de qualquer área de conhecimento é a história de como seus termos e conceitos mudaram ao longo do tempo e continuam a mudar. Em livros das mais variadas ciências, encontramos com frequência afirmações do tipo: “Durante muito tempo se acreditou que X, mas essa tese já foi abandonada desde que Y comprovou que Z…”. Ou do tipo: “O termo P foi usado durante muito tempo para definir Q, mas atualmente o termo mais empregado é R”. Um exemplo conhecido é o dos termos que designam as partes do corpo humano. No final da década de 1990, vários desses termos da anatomia receberam uma reformulação: o sistema digestivo passou a ser aparelho digestivo; a trompa de Eustáquio passou a se chamar trompa auditiva; o ouvido — para surpresa de muita gente — agora é uma das partes da orelha; as conhecidas amígdalas (que arrancaram de mim quando criança) agora são tonsilas palatinas; a rótula se chama agora patela.

O que tem isso a ver com o título deste texto: “Eu e você não somos pronomes”? Tem muito a ver. Corre pelas redes digitais um meme (reproduzido aqui), em que um homem, na ilusão de ser amado, pergunta a uma mulher: “Você e eu somos o quê?”, ao que ela responde: “Pronomes”, para decepção do mancebo. Já vi esse mesmo meme em outras línguas, com a mesma ilustração e a mesma resposta. Tentei convencer algumas pessoas de que você (ou tu, dá no mesmo) e eu não são pronomes, mas em vão. A doutrina gramatical tradicional — com seus conceitos e termos — está de tal modo implantada no ADN da cultura linguística ocidental que é dificílimo fazer as pessoas aceitarem mudanças nela. (Eu aprendi que o ácido desoxirribonucleico se chama ADN, porque afinal a gente fala português, mas isso foi no milênio passado, quando o parasitismo linguístico do inglês não estava ainda no nível em que está hoje.)

Para entender por que designar eu e você (e seus plurais) como pronomes é inadequado, precisamos recorrer a dois termos de origem grega: dêixis e anáfora. A dêixis é a propriedade que os elementos linguísticos têm de apontar para a realidade empírica. Quando digo “Leva essa mesa pra ”, o advérbio tem propriedade dêitica: esse só pode ser compreendido dentro do contexto de interação da fala, num momento e lugar precisos. A anáfora, por sua vez, permite a retomada, por um elemento linguístico, de algo que foi dito antes, na fala ou na escrita: “Morei muitos anos no Recife, foi que aprendi a gostar de tapioca”. Agora, o advérbio não aponta para nada na realidade empírica, ele retoma a expressão no Recife, faz referência a algo dito antes. A dêixis aponta para algo que está no contexto, enquanto a anáfora retoma algo que foi enunciado anteriormente no texto.

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Não é mudança linguística. É tragédia social!

Não é mudança linguística. É tragédia social! Mudança linguística ou tragédia social?

De vez em quando, faço postagens em que critico determinados usos de palavras, expressões e construções gramaticais que me parecem ou descabidas ou pedantes ou decorrentes de um domínio insuficiente da escrita mais monitorada, quando não é tudo isso junto. Invariavelmente, aparece algum comentário do tipo “mas isso não é a língua que está mudando?”; “você, que luta contra o preconceito linguístico, não está sendo preconceituoso?”; “por que criticar a mudança linguística?” e por aí vai.

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