Blog da Parábola Editorial

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A distopia da língua única

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Marcos Bagno

Num livro publicado em 1875, o linguista estadunidense William Dwight Whitney (1827-1894) escreveu que o avanço do que ele chamava de “civilização” (leia-se, a de matriz branca ocidental judeu-cristã colonialista) tinha desalojado, ao longo do tempo, “a babel de dialetos discordantes”, de modo que “os homens começam a sonhar com um tempo em que uma língua poderá ser falada por toda a terra. E embora o sonho possa ser utópico, não há nele um só elemento de impossibilidade teórica: somente certa condição de circunstâncias históricas é necessária para torná-lo inevitável” (The Life and Growth of Language, cap. 9).  

Em 1875, os Estados Unidos ainda não eram a superpotência planetária que viriam a se tornar poucas décadas depois daquela publicação, ainda se recuperavam do trauma da Guerra Civil (1861-1865), e a nação mais poderosa era a Grã-Bretanha, cuja política imperialista tinha feito o inglês se expandir mundialmente a partir do final do século 17. O fato de uma potência de língua inglesa ter sido substituída por outra da mesma língua é o motivo por que nos encontramos hoje, nas primeiras décadas do século 21, total, completa e absolutamente subjugados a um imperialismo linguístico sem precedentes na história da humanidade.

"...subjugados a um imperialismo linguístico sem precedentes na história da humanidade."

Sim, a história da humanidade também pode ser contada da perspectiva das línguas que se ergueram acima de muitas outras e se sobrepuseram a elas. No chamado “berço da civilização”, a Mesopotâmia, a língua suméria, mesmo depois de ter deixado de ser falada por volta de 2000-1800 aec, permaneceu como língua literária, erudita e cerimonial da região até o século 1 ec, o que é de fato um longo período. Quando se formou o vasto império persa (550 aec), a língua aramaica passou a ser o veículo de comunicação entre os diferentes povos que o compunham (e assim permaneceu por muito tempo: Jesus Cristo pregou em aramaico). Mais adiante, em consequência dos empreendimentos militares de Alexandre Magno (356-323 aec), o grego se tornou a primeira língua europeia a se expandir para muito além de seu território original e adquiriu o status de idioma da cultura e da política no Egito, na Ásia Menor (atual Turquia) e em todo o Oriente Médio (o Novo Testamento, por exemplo, foi todo escrito em grego por judeus que se achavam sob o domínio político de Roma). Somente a partir do século 7 ec, com a expansão do islamismo, é que o grego perdeu aquele status, tendo sido substituído pelo árabe em todo o Norte da África e no Oriente Médio, enquanto o que sobrava do Império Romano do Oriente (com sede em Constantinopla, atual Istambul, antiga Bizâncio) ia sendo abocanhado progressivamente pelos turcos vindos das planícies da Ásia Central, até a derrota final dos bizantinos em 1453. O árabe, por ser a língua do Corão, exerceu enorme influência sobre as línguas de outros territórios islamizados como a Turquia, a Pérsia (Irã), o Afeganistão, o Paquistão e partes da Índia (o farsi — principal língua do Irã — e o urdu — principal língua do Paquistão —, por exemplo, que não têm nenhum parentesco com o árabe, são grafados com o sistema de escrita desta língua).

"...a história da humanidade também pode ser contada da perspectiva das línguas que se ergueram acima de muitas outras e se sobrepuseram a elas."

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Sobre livros, árvores & etimologias

FAIA Dois nomes diferentes para uma mesma árvore: faia e beech, fagus e *bokjon. Diferentes? Só na casca externa do tronco...

A leitura de um belíssimo livro — El infinito en el junco: la invención de los libros en el mundo antiguo (2020), da escritora espanhola Irene Vallejo — me fez recordar um fato muito interessante: os livros e o mundo vegetal têm relações antiquíssimas que vão muito além do papel de que eles são feitos. Vallejo parte do papiro como mote para reconstituir a história da escrita e da leitura na antiguidade, mas o que me deu vontade de contar é a história das palavras mesmas que designam o livro em diversas línguas. As palavras também têm raízes, quase sempre ocultas no solo profundo do uso cotidiano que a gente faz da língua, e o que vou mostrar, numa rápida jardinagem e com os instrumentos adequados, é de que modo as raízes de algumas palavras se enredam há milênios nas raízes de algumas plantas.

Existe uma árvore típica das terras frias do hemisfério norte chamada faia em português e beech em inglês. O nome faia provém do latim fagea, um adjetivo feminino derivado de fagus, o nome da árvore. Por sua vez, o beech do inglês descende de *bokjon, um termo do proto-germânico, uma língua hipotética da qual derivam todas as línguas do grupo a que pertencem o inglês, o alemão, o sueco, o islandês etc., e que deve ter sido falada mais ou menos a partir de 2000 antes da Era Comum (o asterisco em *bokjon indica que ele não é um termo atestado, documentado em alguma fonte, mas reconstruído por meio de uma metodologia desenvolvida por linguistas do século 19, da qual vou dar uma palhinha logo a seguir).

Dois nomes diferentes para uma mesma árvore: faia e beech, fagus e *bokjon. Diferentes? Só na casca externa do tronco porque, lá no fundo, nas raízes que a gente não vê, porque estão enterradas no solo do tempo, esses dois nomes são aparentados, primos-irmãos. A semelhança é percebida justamente por quem pratica a chamada linguística histórico-comparada, uma disciplina que floresceu no já mencionado século 19, especialmente em terras de língua alemã. O objetivo dos linguistas de então era estabelecer o parentesco entre as línguas que passaram a ser chamadas, naquela mesma época, de indo-europeias porque, como diz o nome, eram faladas desde a Índia até Portugal, no extremo ocidental da Europa (muitos séculos mais tarde, com a expansão colonialista, quatro dessas línguas seriam levadas para o resto do planeta e impostas literalmente a ferro e fogo a outros povos: português, espanhol, inglês, francês e neerlandês). A hipótese de base é a de que, por volta de 5000 antes da Era Comum, em algum lugar entre a Europa e a Ásia, provavelmente nas estepes entre o Mar Negro e o Mar Cáspio, existiu uma língua que, por causa das diversas migrações de seus falantes em diferentes direções, acabou por se transformar em dezenas de outras. Essa língua pré-histórica foi chamada indo-europeu e sua reconstituição, graças ao método comparativo, dominou praticamente toda a linguística oitocentista.

Não dá para explicar o método histórico-comparativo aqui (quem tiver interesse pode ler com proveito o livro Linguística comparada e tipologia, de Giulia Bossaglia, https://www.parabolaeditorial.com.br/linguistica-comparada-e-tipologia), mas uma das muitas regularidades que os pesquisadores estabeleceram (regularidades que foram chamadas de “leis fonéticas”) é que de um *bh- inicial do indo-europeu pré-histórico deriva um b- nas línguas germânicas e um f- em latim. Três exemplos:

(1) da raiz indo-europeia *bheue- derivam o inglês be (‘ser’) e o latim fui (‘fui’, do verbo ser) e também o fu- de futurus (‘futuro’);

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