Blog da Parábola Editorial

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 A COISA CELTA

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Marcos Bagno

 

Faz algum tempo, assistindo o noticiário da televisão francesa, ouvi a locutora dizer que o presidente Emmanuel Macron estava de partida para a residência oficial de verão em Brégançon. Esse nome imediatamente acendeu luzinhas na minha cabeça de nerd da geografia e da etimologia. Eu nunca tinha ouvido falar de Brégançon, mas logo deduzi que a semelhança entre Brégançon, na França, Bregenz, na Áustria, e Bragança, em Portugal, não podia ser mera coincidência. E de fato não era. Qualquer foto de Brégançon (como aquela acima, que ilustra este texto) mostra um rochedo à beira do Mediterrâneo, no alto do qual se encarapita um forte que circunda uma bela residência presidencial. Por ser um rochedo alto é que em seu nome aparece a palavra celta briga, que significa “altura, elevação” e daí “fortificação elevada”. Essa palavra celta, por sua vez, provém do indo-europeu *brhergh, “alto, elevado”, que também está na origem do alemão Berg, “montanha”. Como na antiguidade, por razões de defesa contra ataques inesperados, muitas povoações eram fortificadas e construídas em locais altos — colinas, montes, outeiros —, daquela mesma raiz indo-europeia derivam os termos Burg, do alemão, e borough e burgh, do inglês, que, inicialmente, designavam fortes e fortalezas e, mais tarde, “cidade”. O equivalente latino era o castrum, cujo diminutivo, castellum, nos deu castelo, palavra que, antes de designar a morada de um nobre, de um rei ou de uma princesa encantada, nomeava construções fortificadas no topo de alguma proeminência do terreno. O castrum romano está presente em muitíssimos topônimos (nomes de lugar) na Grã-Bretanha, nas formas -caster (Lancaster), -cester (Leicester) ou -chester (Winchester), testemunhos do período em que a ilha esteve sob domínio romano.

Aquela mesma raiz briga aparece em vários outros topônimos na Europa, incluindo localidades do norte da Itália (Briga, Briga Navarese, Briga Marittima e até uma redundante Briga Alta). Mas é na Península Ibérica que eles vão aparecer em maior abundância. A Bragança portuguesa era Brigantia em latim, e a linda cidade galega que hoje se chama Corunha (A Coruña, em galego), era Brigantium para os romanos. Mas é como sufixo que -briga pululava na Antiguidade ibérica: Conímbriga (de onde provém Coimbra), Cetóbriga (atual Setúbal), Lacóbriga (atual Lagos), Langóbriga (atual Logoivra), todas em Portugal; Nemetóbriga (na Galiza), Nertóbriga (na Espanha), Segóbriga (também na Espanha), para citar alguns poucos. 

Da noção concreta de “altura, elevação” derivou, como consequência naturalíssima, o conceito abstrato de “eminente, excelente, excelso, altaneiro” etc. Daí porque daquela mesma raiz celta deriva o nome da deusa Brígida (Brighid em celta), associada ao fogo, à fertilidade, à primavera, nome que está na origem de Bridget, Brigitte, Birgit etc. O nome se popularizou, não por causa da deusa celta, mas de uma santa católica, Brígida da Irlanda ou Brígida de Kildare (452-524), para quem, curiosamente, foram transferidos alguns dos mesmos atributos da deusa “pagã”. Também existiu uma tribo céltica chamada brigantes, que deixou marcas de sua passagem por vários lugares da Europa, desde a Áustria atual até a Inglaterra. Talvez se chamassem assim por se considerarem “altos, excelsos, eminentes” ou porque se estabeleciam em lugares elevados. 

Será que essa briga que significava “altura, elevação” tem alguma coisa a ver com a nossa briga, “querela, conflito, discussão”? Pois não é que tem? A palavra briga nos veio do italiano que, por sua vez, a herdou do celta briga, “força”, e daí “prepotência”. É mais uma derivação metafórica secundária do conceito de “altura”: se a pessoa é “altaneira, excelsa, eminente” isso lhe confere algum tipo de superioridade, de poder, de força para brigar… De metáfora em metáfora é que essa ideia de força acabou se transformando em altercação, bate-boca, conflito.

Os celtas foram um povo que ocupou grande parte da Europa na Antiguidade. Dividiam-se em inúmeras tribos, não constituíram uma civilização sedentária como os gregos e os romanos. Eram chamados Celtaepelos romanos e Keltoi pelos gregos, mas também recebiam nomes iniciados em gal- (às vezes kal-), de onde se origina o nome da Gália (atribuído à parte norte da Itália, que os romanos chamavam de Gália Cisalpina, isto é, abaixo dos Alpes, uma região densamente habitada por tribos célticas; e à França atual, a Gália Transalpina), da Galiza ou Galícia (noroeste da Espanha) e da Galácia, uma região no interior da atual Turquia, onde se estabeleceu uma população céltica, os gálatas, a quem o apóstolo Paulo endereçou uma de suas epístolas. Curiosamente, o nome do país de Gales, uma região desde sempre e até hoje habitada por falantes de uma língua celta, não tem a mesma origem: Wales, em inglês, provém de um termo anglo-saxão, Wielisc, “estrangeiro, forasteiro”, usado pelos falantes de línguas germânicas que migraram para a Grã-Bretanha, ocuparam a ilha e passaram a chamar de “estrangeiras” as populações que já viviam lá fazia muito mais tempo… No entanto, como a história é toda feita de labirintos, esse termo anglo-saxão deriva remotamente do nome de uma população céltica continental, os volcos.

Conquistados e subjugados pelos romanos, os celtas do continente foram incorporados ao império, adotaram o latim e aos poucos abandonaram suas línguas ancestrais. Como não tinham tradição escrita, o pouco que sabemos de suas línguas e costumes nos chegaram de autores não celtas, especialmente de Júlio César, autor de Commentarii de bello Gallico (“Comentários sobre a guerra da Gália”, também conhecido por Bellum Gallicum), que foi anotando aspectos interessantes da cultura gaulesa enquanto travava suas batalhas para a conquista do território. Na batalha de Alésia, em 52 antes da Era Comum, César derrotou o chefe gaulês Vercingetórix (ou Vercingetórige), o último a resistir às legiões romanas. A sílaba final do nome desse chefe, -rix, é cognata do latim rex, isto é, “rei”, e está na origem de todos os nomes dos personagens gauleses criados por Goscinny e Uderzo: Astérix, Obélix, Panoramix, Abraracourcix etc. — o que é uma evidente brincadeira, pois nem todos os nomes gauleses de pessoas terminavam em -rix. Muitos linguistas defendem a tese de que as línguas itálicas (entre as quais o latim) e as línguas célticas constituíam, num período pré-histórico, um mesmo grupo de idiomas, chamado ítalo-céltico, que depois se dividiu à medida que os falantes se dispersaram em diversas direções a partir de um núcleo original. Isso explica a semelhança de muitas palavras do celta e do latim além, é claro, do fato de também serem línguas derivadas do ainda mais remotíssimo indo-europeu. Outros pares de palavras semelhantes entre o celta e o latim são epos/equus (“cavalo”), medios/medium (“meio”), giamos/hiems (“inverno”), taruos/taurus (“touro”), caros/carus (“caro”), seno/senex (“velho”), uiro/uir (“homem”).

A Grã-Bretanha tinha sido conquistada e ocupada pelos romanos no primeiro século da Era Comum, mas eles não ficaram lá por tempo suficiente para que o latim se impusesse às populações locais, que falavam línguas célticas. Pouco depois da retirada dos romanos, a ilha foi invadida e conquistada pelos anglos e saxões, vindos do que é hoje o norte da Alemanha e a Dinamarca. Por mil peripécias históricas, o inglês (descendente do anglo-saxão) se tornou hegemônico na Grã-Bretanha e na Irlanda, de modo que as línguas celtas — ali faladas há mil e quinhentos anos — hoje se encontram em grave perigo de extinção. Com exceção do galês, que ainda tem alguma vitalidade, as demais línguas celtas do arquipélago — irlandês, escocês, manx (da ilha de Man) – tem um número de falantes que se reduz cada dia mais. O córnico, antigamente falado na península da Cornualha, já desapareceu faz tempo. Quando os anglo-saxões iniciaram sua conquista da Grã-Bretanha, um contingente de habitantes da ilha migrou para o continente. Uma parte deles foi dar nas costas da Galiza, mas logo foram assimilados pela cultura e pela língua locais, e o nome da localidade de Bretoña dá testemunho disso. Outros tantos desembarcaram no que hoje é a região francesa da Bretanha, assim chamada justamente por causa deles, e lá se estabeleceram, fazendo o caminho de volta de seus ancestrais, que tinham deixado o continente para se aventurar no arquipélago britânico. Na Bretanha francesa sobrevive uma língua céltica, o bretão, também falado por cada vez menos gente. 

As línguas célticas mais antigas começaram a deixar de ser faladas no continente europeu em consequência da conquista romana da Hispânia e da Gália, pouco séculos antes da Era Comum, mas suas marcas permanecem bem guardadas numa infinidade de topônimos que registram a relativa unidade linguística das numerosas tribos que falavam aquelas línguas. De Bregenz, na Áustria, até Corunha (Brigantium), no extremo noroeste da Península Ibérica, a distância é de quase 2.000 km, um percurso imenso se pensarmos no que eram as possibilidades de transporte 2.500 anos atrás. Os nomes dos rios (designados pelo delicioso termo de potamôminos) também estão impregnados de águas célticas: o Tâmisa (Inglaterra), o Tâmega (Portugal) e o Tambre (Galiza) compartilham uma possível raiz comum que trazia a ideia de “escuro” (os rios teriam águas escuras). O termo celta abona, “rio”, comparece em muitíssimos lugares do ocidente europeu: Avon (na França e também na Inglaterra — vários rios com o mesmo nome —, às margens de um dos quais fica a cidade natal de Shakespeare, Stratford-upon-Avon), Abens (Alemanha), Ave (Portugal), Avia (Galiza), Avión (Espanha). 

E o que dizer do parentesco entre o nome da bela cidade de Évora, em Portugal, e York, na Inglaterra? Yorkpode não se parecer nada com Évora, mas se tomarmos os nomes latinos da cidade portuguesa, Ebora, e da inglesa, Eboracum, fica nítida a origem comum. E é uma origem muito interessante. Os celtas veneravam a árvore que em português se chama teixo e que eles chamavam eburos. O teixo produz uma toxina poderosa que pode causar efeitos narcóticos e até mesmo a morte. Os celtas o consideravam um elo entre o mundo dos vivos e o dos mortos. Sua madeira, forte e flexível, era muito empregada. Havia mesmo uma tribo que se chamava Éburos. Além de Évora e York, são muitos os topônimos que trazem em sua origem o nome do eburos, isto é, do teixo, especialmente em terras de língua francesa, topônimos em que muitas vezes é difícil reconhecer o nome da árvore:  Évry, Yvrac, Ivry, Ivrey, Ebreuil, Evrecy, Yversay... 

Praticamente tudo o que sabemos dos celtas antigos é de segunda mão, ou seja, são testemunhos e relatos de pessoas não celtas que, por uma razão ou outra (e quase sempre em circunstâncias de guerra), entraram em contato com eles. Por isso, algumas das etimologias que apresentei aqui têm de ser acolhidas com uma pitada de dúvida. Esse conhecimento relativamente escasso acabou por envolver os celtas numa aura de mistério, que chegou a seu apogeu no final do século 18 e ao longo do 19 com o que foi chamado de celtomania — não por acaso o mesmo período de eclosão da ideologia romântica, que idealizava um passado mítico. Vale a pena ler o verbete celtomanie da Wikipédia em francês para se ter uma ideia do que foi. Até hoje muita gente se interessa pelos celtas por crer que eles dominavam algum tipo de sabedoria secreta, detinham a chave de muitos segredos místicos, praticavam magia etc. Todo um arsenal de falsos mitos e lendas postiças que não encontra nenhum fundamento na arqueologia, na história e na linguística. 

Poucas são as palavras celtas que conseguiram abrir caminho nas outras línguas da Europa. Uma delas é justamente caminho, que entrou no latim vulgar sob a forma *camminum. Também poderiam vir do celta câmbio, carro, cerveja, embaixada, légua, mina, peça, vassalo… Nomes próprios como Artur, Bibiana, Brígida, Morgana, Sabrina… Muitos outros nomes de lugar além dos já citados: Baviera, Bélgica, Boêmia, Bolonha, Gênova, Genebra, Lugo, Lugano, Lyon, Milão, Paris, Viena, além do -gal de Portugal… De língua celtas modernas nos veio o uísque, do inglês whiskey, derivado por sua vez do irlandês/escocês uisge beatha, “água da vida” — ao que parece, os irlandeses e escoceses traduziram para suas línguas o nome eau-de-vie (“água de vida”) que os franceses têm usado há séculos para designar a aguardente. Também das terras altas escocesas nos veio a palavra clã (clann, “família”), que muito recentemente no Brasil passou a ser usada para designar os membros de uma família de delinquentes confessos que, se houver justiça séria neste país, terão de ser julgados, condenados e presos por uma longuíssima série de crimes de toda espécie, incluindo crimes contra a humanidade. 

 

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Comentários 1

Visitantes - PATRICIA KONDER LINS E SILVA em Domingo, 26 Março 2023 23:24

Obrigada por tornar fascinante a origem das palavras. Adorei o artigo.

Obrigada por tornar fascinante a origem das palavras. Adorei o artigo.
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