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'Você' e 'eu' não somos pronomes

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A história de qualquer área de conhecimento é a história de como seus termos e conceitos mudaram ao longo do tempo e continuam a mudar. Em livros das mais variadas ciências, encontramos com frequência afirmações do tipo: “Durante muito tempo se acreditou que X, mas essa tese já foi abandonada desde que Y comprovou que Z…”. Ou do tipo: “O termo P foi usado durante muito tempo para definir Q, mas atualmente o termo mais empregado é R”. Um exemplo conhecido é o dos termos que designam as partes do corpo humano. No final da década de 1990, vários desses termos da anatomia receberam uma reformulação: o sistema digestivo passou a ser aparelho digestivo; a trompa de Eustáquio passou a se chamar trompa auditiva; o ouvido — para surpresa de muita gente — agora é uma das partes da orelha; as conhecidas amígdalas (que arrancaram de mim quando criança) agora são tonsilas palatinas; a rótula se chama agora patela.

O que tem isso a ver com o título deste texto: “Eu e você não somos pronomes”? Tem muito a ver. Corre pelas redes digitais um meme (reproduzido aqui), em que um homem, na ilusão de ser amado, pergunta a uma mulher: “Você e eu somos o quê?”, ao que ela responde: “Pronomes”, para decepção do mancebo. Já vi esse mesmo meme em outras línguas, com a mesma ilustração e a mesma resposta. Tentei convencer algumas pessoas de que você (ou tu, dá no mesmo) e eu não são pronomes, mas em vão. A doutrina gramatical tradicional — com seus conceitos e termos — está de tal modo implantada no ADN da cultura linguística ocidental que é dificílimo fazer as pessoas aceitarem mudanças nela. (Eu aprendi que o ácido desoxirribonucleico se chama ADN, porque afinal a gente fala português, mas isso foi no milênio passado, quando o parasitismo linguístico do inglês não estava ainda no nível em que está hoje.)

Para entender por que designar eu e você (e seus plurais) como pronomes é inadequado, precisamos recorrer a dois termos de origem grega: dêixis e anáfora. A dêixis é a propriedade que os elementos linguísticos têm de apontar para a realidade empírica. Quando digo “Leva essa mesa pra ”, o advérbio tem propriedade dêitica: esse só pode ser compreendido dentro do contexto de interação da fala, num momento e lugar precisos. A anáfora, por sua vez, permite a retomada, por um elemento linguístico, de algo que foi dito antes, na fala ou na escrita: “Morei muitos anos no Recife, foi que aprendi a gostar de tapioca”. Agora, o advérbio não aponta para nada na realidade empírica, ele retoma a expressão no Recife, faz referência a algo dito antes. A dêixis aponta para algo que está no contexto, enquanto a anáfora retoma algo que foi enunciado anteriormente no texto.

Sabendo o que é dêixis e o que é anáfora, podemos voltar aos nossos pseudopronomes. Na tradição escolar se firmou a ideia de que “o pronome substitui o nome”. Essa definição é simplista por várias razões. Por exemplo, um pronome pode retomar toda uma oração: “O presidente Lula comparou acertadamente o genocídio do povo palestino ao genocídio cometido pelos nazistas e isso provocou a ira do primeiro-ministro que promove essa matança”. Aqui, isso retoma, anaforicamente, a oração “o presidente Lula comparou acertadamente o genocídio do povo palestino ao genocídio cometido pelos nazistas”, ou seja, o pronome isso não “substitui” nome algum.

Mas mesmo que ficássemos com essa ideia inadequada de substituição de nome, poderíamos perguntar: qual é o “nome” que eu “substitui”? É fácil responder: nenhum. A palavrinha eu não retoma nada. A palavrinha eu, é fácil ver, aponta para uma pessoa, identifica quem está falando — eu tem propriedade dêitica, portanto, depende do contexto, da situação de fala. O mesmo vale para tu ~ você: essas palavras também apontam para quem está falando num ato de interação. E o mesmo vale para nós e vocês. Uma vez que esses termos indicam quem está falando, o importante linguista francês Émile Benveniste (1902-1976) sugeriu chamá-los de índices pessoais ou índices de pessoa.

Os verdadeiros pronomes são aqueles que, repetindo, retomam anaforicamente algo que foi dito antes, no texto (falado ou escrito). E é para isso que servem ele(s) e ela(s). Afinal, posso dizer tranquilamente: “O primeiro-ministro de Israel é um genocida, mas ele tem o apoio dos Estados Unidos e por isso pode fazer o que bem quiser”. A palavrinha ele aqui retoma “o primeiro-ministro de Israel”.

Benveniste também chamou a atenção para o fato de que a expressão “pessoas do discurso” só se aplica aos índices pessoais (eu, tu, você, nós, vocês), porque toda interação verbal se constitui de um diálogo entre pessoas. Por outro lado, ele/ela não estão presentes na interação, ele/ela são o assunto da conversa, fala-se de ele/ela. Por isso, Benveniste diz que ele/ela são pronomes da “não-pessoa”. Outra diferença importante entre os índices pessoais e os pronomes da não-pessoa é que estes podem retomar toda e qualquer coisa, ou seja, eu posso usar ele para me referir a um carro, ao amor, ao meu computador, a um buraco na rua, a um mito, a um sonho, ao nada e por aí vai… Tudo isso é impossível de fazer com eu e você pela própria natureza desses termos.

Um fato interessante a respeito dos pronomes da não-pessoa é que em muitas línguas eles simplesmente não existem. O nosso tetravô latim, por exemplo, não tinha pronomes equivalentes aos nossos ele/ela. Bastava a forma verbal para fazer referência à entidade mencionada antes, tal como é possível em português: “Paulo me telefonou, disse que não vem mais”. Com a passagem do tempo, porém, e por causa de mudanças ocorridas na língua, as pessoas começaram a sentir necessidade de deixar claro a quem se referiam. Para isso, passaram a usar os demonstrativos, exatamente como fiz lá em cima: “Outra diferença importante entre os índices pessoais e os pronomes da não-pessoa é que estes podem retomar toda e qualquer coisa”. Os pronomes da não-pessoa em todas as línguas românicas derivam de demonstrativos latinos: de ille (‘aquele’) temos el (romeno), egli (italiano), il (francês), él (espanhol), ell (catalão), ele (galego e português). Também derivam de demonstrativos latinos os pronomes o (que também é artigo) e lhe.

E a coisa não para por aí: nas línguas do mundo em que existem pronomes equivalentes a ele/ela, esses pronomes são derivados de demonstrativos que se gramaticalizaram. O pronome he (‘ele’) do inglês, por exemplo, deriva de uma raiz indo-europeia *ko-, ‘isto, aquilo’, assim como she (‘ela’) deriva de *so- com o mesmo sentido original de ‘isto, aquilo’. (A passagem de *k- inicial em indo-europeu a h- inicial nas línguas germânicas é uma mudança muito regular, mas isso é para especialistas.) No sânscrito, a antiga língua clássica da Índia, ‘eu’ se dizia aham, ‘tu’ se dizia tvam, mas para a não-pessoa se usava saḥ, ‘isso, aquilo’. O mesmo se dá com os artigos definidos: nas línguas em que existem, eles derivam de demonstrativos. O latim, mais uma vez, não tinha artigos, de modo que a semelhança existente em espanhol entre él (‘ele’) e el (‘o’, artigo) não é mera coincidência, e o acento em él tem só finalidade diferenciadora. Também não é coincidência que o artigo italiano il seja idêntico ao pronome il do francês. Vem tudo do ille/illu- latinos.

Como eu disse no começo do texto, as terminologias de cada área de conhecimento são revistas, criticadas e reformuladas com os avanços ocorridos na área. A nomenclatura gramatical, no entanto, permanece praticamente a mesma que foi estabelecida pelos gramáticos alexandrinos no século 3 antes da Era Comum. Traduzida para o latim, ela se firmou na tradição gramatical e está agarrada nela como os organismos parasitas que, se forem arrancados, levam o hospedeiro à morte. Não precisamos reformular completamente a nomenclatura gramatical — os gregos tiveram sacadas geniais para analisar sua língua —, mas algumas modificações viriam a calhar para nos ajudar a compreender melhor o funcionamento das línguas. Na minha Gramática pedagógica do português brasileiro (https://www.parabolaeditorial.com.br/gramatica-pedagogica-do-portugues-brasileiro-55950564) optei por falar de índices pessoais e pronomes da não-pessoa e me alegro quando vejo algumas pessoas usando essa terminologia (que não é minha, é de Benveniste) em seus trabalhos.

Conclusão: O que somos vocêeu? Somos índices pessoais. Pronome mesmo é o ele por quem a moça do meme provavelmente está apaixonada e, como não-pessoa, está devidamente fora da gravura.

 

Não é mudança linguística. É tragédia social!

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