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Marcos Bagno

 

Por que será que as línguas ditas românicas (ou neolatinas) apresentam semelhanças entre si, mas não são idênticas? Se todas são “derivadas do latim”, por que não “evoluíram” todas na mesma direção? O português e o espanhol, por exemplo, vivendo há centenas de séculos lado a lado na Península Ibérica, são tão parecidos e, ao mesmo tempo, apresentam diferenças marcantes — por quê? A resposta é: o português, o espanhol e as outras línguas românicas ganharam suas feições atuais porque foram, numa fase inicial de sua história, segundas línguas das comunidades em que surgiram. Uma segunda língua (ou L2), como o próprio rótulo sugere, não é a língua da socialização inicial de uma pessoa, é uma língua aprendida num período posterior ao da aquisição da chamada língua materna, que seria a primeira língua (ou L1) — vou me valer dessas classificações, embora esses conceitos venham sofrendo reformulações. 

No século 19, quando se firmou a linguística histórico-comparativa, os estudiosos (quase todos alemães) se apoiavam na tese de que as línguas se modificavam “de dentro para dentro”, como organismos vivos que nascem, crescem, amadurecem, decaem e morrem. Contra essa visão organicista (já escrevi sobre isso: https://bit.ly/3Ac48Fn), no final do mesmo século, alguns autores propuseram ver a mudança linguística também como efeito do contato de línguas, isto é, das relações que se estabelecem, por diversas vicissitudes históricas, entre falantes de línguas diferentes.

Poderíamos recuar nosso relato até a pré-história, mas vamos ficar no domínio das línguas românicas para não nos alongarmos além do necessário. Os romanos, em seu expansionismo imperial, levaram o latim para lugares muito distantes de seu Lácio natal. Uma vez conquistada uma região (e seus habitantes), ela recebia o nome de província. Roma enviava para lá um contingente de funcionários imperiais, responsáveis pela administração do território conquistado, guarnições militares, colonos que recebiam terras para cultivar, toda uma gente falante de latim que se estabelecia com suas famílias e servos. Também implantavam nas províncias as diversas instituições que geriam a vida sob o império — templos, tribunais, escolas etc. —, junto com os funcionários que se ocupavam da administração (questores, censores, cônsules, edis…). Construíam aquedutos, rasgavam estradas, fundavam cidades conformes à urbanização típica romana.

Os povos conquistados se viam compelidos a se incorporar a essa nova estrutura social, e o primeiro passo nessa direção era a adoção da língua latina. Ao adotarem a língua nova, no entanto, transferiam para ela traços fonéticos da sua língua ancestral, algumas estruturas morfossintáticas e um conjunto de vocábulos que passavam a integrar o léxico próprio daquela região. É o mesmo que acontece quando uma pessoa emigra para outro país e tem de aprender a língua que se fala ali: se for adulta, pode chegar a conseguir se comunicar de forma básica, mas o impacto de sua língua materna sobre a língua circundante será bem audível. 

Os sotaques característicos das variedades da região Sul do Brasil são um bom exemplo disso: os imigrantes de origem alemã e italiana, principalmente, estão na base dos traços que “denunciam” de imediato a origem sulista de uma pessoa. Há variedades do interior do Paraná e de Santa Catarina em que não se faz a distinção entre caro e carro (a pronúncia única é “caro”) porque nos dialetos alemães falados pelos imigrantes (e que, por sinal, continuam a ser falados naqueles lugares) existe um único fonema vibrante, e essa não distinção entre o [r] de caro e o [R] de carro foi introduzida no português falado ali. Também nessas áreas não se faz diferença entre jato e chato (a pronúncia única é “chato”), pela mesma razão. O impacto dos italianos na pronúncia tradicional paulistana é audível nas pronúncias hómem, cóme, tóma, fóme etc., em que a vogal tônica é aberta, não nasalizada como no resto do Brasil, resultado, de novo, da adoção do português por pessoas em cujas línguas não existem vogais nasais.

É assim que se pode explicar as diferenças entre as línguas românicas: o latim passou a ser falado por populações que o adotaram como uma L2 que, só algumas gerações depois, se tornaria a L1 da comunidade. Nesse intervalo, a língua ancestral teve tempo de exercer suas influências sobre a língua nova. O linguista italiano Graziadio Isaia Ascoli (1829-1907) classificou a língua original do povo conquistado de substrato, isto é, o estrato, a camada que fica por baixo (é um termo emprestado da botânica). Segundo essa tese, os diferentes substratos respondem pelas diferenças entre as línguas românicas que se formaram na parte ocidental do Império. Muitos desses substratos eram línguas celtas e é a eles que algumas teorias vêm atribuindo as mudanças mais notáveis ocorridas nas línguas românicas ocidentais. Uma dessas mudanças é a transformação das surdas latinas intervocálicas [p], [t] e [k] nas sonoras [b], [d] e [g]: do latim capere temos caber, de vita temos vida, de lacu temos lago (tanto em espanhol quanto em português).

No extremo noroeste da Península Ibérica, na antiga província romana chamada Galécia (que incluía uma porção do norte de Portugal, a Galiza e parte das Astúrias), os romanos toparam com um povo que foi chamado de galaico, falante de uma língua céltica. A variedade de latim que se formou ali ganhou algumas características únicas, sendo a mais notável a queda de [l] e [n] intervocálico. Assim, ao lado de color(espanhol), couleur (francês), colore (italiano), culoare (romeno) — todos derivados do latim colore- —, na variedade galaica o que se tem é cor, resultado da queda do [l] do latim colore-, que produziu inicialmente coor e, mais tarde, cor. A luna latina, que conserva seu [n] naquelas línguas (luna, lune, luna, luna) se transformou em lua na Galécia. Os galaicos devem ter dado a essas consoantes intervocálicas o mesmo tratamento que tinham dado a elas em sua língua ancestral.

O latim foi portanto, inicialmente, uma L2 para os galaicos. Quando se tornou a L1 de seus descendentes, ela já estava configurada pelo influxo do substrato celta. Com o tempo, esse latim galaico foi sofrendo novas mudanças, até assumir as feições de uma língua que passou a ser chamada, na alta Idade Média, de galego (nome derivado evidentemente de galaicu-). Enquanto o galego ia se formando naquele canto remoto da antiga Hispânia romana, a Península era pouco a pouco conquistada pelos mouros vindos do norte da África. Durante mais de sete séculos, os nobres cristãos do norte da península empreenderam campanhas militares para expulsar os mouros e “reconquistar” as terras ocupadas por eles. Foram tendo sucesso nessas empreitadas até que, em 1492, o último território sob domínio muçulmano, o reino de Granada, foi capturado pelos exércitos de Castela e Aragão, o que deu início à formação do atual Estado espanhol.

Já na fachada atlântica da Península, o movimento de reconquista foi levado adiante por nobres de língua galega, entre eles Afonso Henriques que, ao cabo de muitas peripécias e intrigas familiares, se tornou o primeiro rei de Portugal em 1139. Seu domínio inicial foi o pequeno Condado Portucalense, uma região compreendida mais ou menos entre os rios Minho e Douro. Batalha após batalha, foi expandindo o reino, abocanhando terras sob domínio mouro. Seus sucessores completariam a reconquista: em 1249, com a captura de Faro, no extremo sul, Portugal se tornaria o país com a configuração territorial mais antiga da Europa. 

A parte centro-sul de Portugal esteve sob domínio mouro durante muitos séculos, ao contrário do extremo norte. Com o avanço cada vez mais para o sul das conquistas dos reis portugueses, a língua falada naquele extremo norte também foi levada para o sul. Tudo indica que as populações das terras que iam sendo “reconquistadas”, ainda que fossem cristãs, eram falantes de árabe naquela altura — tinham existido variedades românicas naquelas partes (os chamados dialetos moçárabes), mas é provável que, no momento da reconquista, já tivessem desaparecido. Como resultado, a língua falada no extremo norte de Portugal (e também na Galiza atual) foi adotada pelos habitantes das terras que passaram a fazer parte do reino português. Essa língua (que só muito depois, lá pelos anos 1450, seria chamada de português) foi, portanto, para aquelas pessoas, uma segunda língua. Isso explica as marcadas diferenças entre o português do centro-sul (onde está Lisboa, cuja variedade se tornou a norma para o resto do país) e o português do norte, onde a língua vinha sendo falada há muito mais tempo. Essas diferenças, provavelmente, se devem ao substrato árabe presente no português do centro-sul (e também no espanhol da Andaluzia, região densamente habitada por falantes de árabe — o linguista galego Henrique Monteagudo me disse uma vez que os andaluzes são “os lisboetas de Espanha”). 

É por isso que o importante linguista português Ivo Castro pôde escrever um texto intitulado “Uma língua que veio de longe”, no qual afirma: “Um lisboeta nativo, descendente de muitas gerações de habitantes da capital e do sul do país, fala uma língua que não é autóctone e não descende do latim aí falado no tempo do Império Romano, mas que foi transplantada a partir da Galécia Magna após a reconquista cristã. Exactamente como a língua falada no Rio de Janeiro ou em Maputo foi aí transportada a partir de Portugal”

Sim, amigas e amigos, o português não veio do latim: o português é simplesmente o galego com outro nome, o “galego do Sul”, como diz bem-humoradamente nosso mestre Carlos Alberto Faraco. Se você aprendeu em algum lugar que existiu uma língua chamada galego-português, sinto informar que aprendeu uma léria, uma patranha, uma lorota inventada por filólogos portugueses impregnados da ideologia nacionalista própria do século 19. A língua se chamou galego durante séculos e, repito, só por volta de 1450 passou a ser designada como português (até então era chamada simplesmente de linguagem ou nossa linguagem). Para saber mais e melhor dessa história, leia Assim nasceu uma língua: as origens do português, do linguista português Fernando Venâncio, sucesso de público do outro lado do Atlântico e com edição brasileira prevista ainda para este ano. Prepare-se para sustos, surpresas e epifanias!

O conceito de segunda língua também se aplica à história da formação do português brasileiro. Durante pelo menos 250 anos do período colonial, o português foi língua minoritária por aqui. Numa primeira fase, o que mais se falou nestas terras foram duas línguas confeccionadas pelos jesuítas, empenhados em cristianizar os indígenas para facilitar a sujeição deles à escravização (como tem sido em todo o mundo desde que se institucionalizou a religião que subverteu e deturpou os ensinamentos de Jesus). Eram as chamadas línguas gerais, criadas a partir de duas variedades de tupi faladas, uma na Amazônia, a outra no que viria a ser São Paulo. Essas línguas foram impostas, por meio da catequese, às populações que não falavam tupi, e não faltam relatos da violência dessa imposição, com castigos físicos, decapitações e gente amarrada em boca de canhão para explodir. Também passaram a ser faladas pelas crianças nascidas das relações (muitas vezes igualmente violentas) de homens brancos com mulheres indígenas. (Se quiser saber mais, leia aqui o artigo que Dennys Silva-Reis e eu publicamos sobre isso: https://bit.ly/3BWseFm)

Para a exploração e o cultivo da terra, os colonizadores portugueses iniciaram, já bem cedo na nossa história, a chamada “importação” de mão de obra africana, escravizada. Essas pessoas falavam diversas línguas, a maioria delas do grupo banto, mas também línguas oeste-africanas (como o iorubá), que chegaram mais tarde. Obrigadas a falar entre si e com seus proprietários, tiveram de aprender o português aos trancos e barrancos, sem ensino sistemático e planejado, debaixo de chicote e de sevícias físicas e psicológicas. O português foi, portanto, uma L2 para esses milhões de seres humanos. Esse português adquirido por meio de uma transmissão linguística irregular (leiam os trabalhos de Dante Lucchesi e colegas para conhecer a fundo essa história: https://bit.ly/3JMnrbr) foi se transformando e se sistematizando até se tornar o português brasileiro atual, em sua versão dita “popular”, empregada pela imensa maioria da população.

A língua que a maior parte de nós falamos é, portanto, não só uma língua que veio de longe como também uma língua que, inicialmente não nativa, uma L2, se nativizou sob o poderoso influxo das línguas africanas transplantadas para cá. Tinha razão a importante intelectual negra brasileira Lélia Gonzalez (1935-1994) ao chamar essa língua de pretoguêsUma das sociedades mais racistas do mundo e que promove um genocídio sistemático de sua população negra (especialmente a população negra masculina jovem), sobretudo por meio do terrorismo de Estado praticado pelas “forças da ordem”, fala uma língua enraizada em substrato africano — o racismo no Brasil é praticado por gente que fala uma língua que é europeia na superfície e entranhadamente africana nas profundezas. Os trabalhos de Yeda Pessoa de Castro — sintetizados em seu livro recém-lançado Camões com dendê — são a fonte de conhecimento mais importante para quem deseja entender todo esse longo e sofrido processo histórico. Trabalhos mais recentes (especialmente os de Charlotte Galves e Juanito Avelar: https://bit.ly/3w3OglN) mostram de que modo a gramática do português brasileiro apresenta estruturas morfossintáticas muito semelhantes às das línguas bantas e inexistentes não só no português europeu como também nas demais línguas românicas (“meu telefone acabou a bateria” ou “essa rua não passa ônibus”, por exemplo, só fazem sentido no Brasil).

Conclusão: a ideia de língua “pura” não tem o menor fundamento, a não ser o ideológico. O português brasileiro nasceu como L2, assim como o português do centro-sul de Portugal foi de início uma L2, tanto quanto o latim constituiu uma L2 para os galaicos… Se puxarmos esse fio, ele vai se embrenhar séculos e milênios adentro, até as névoas da pré-história e do surgimento da linguagem na espécie humana — espécie humana que, como se sabe, surgiu na África e de lá se espalhou pelo resto do mundo. Desse modo, não é exagero dizer que todas as línguas do mundo são, na mais original das origens, línguas africanas e, também por isso, segundas línguas.