Entrevista com Marcos Bagno
Por que o título Não é errado falar assim?
Em suma, pessoas que não têm nenhuma formação para tratar dos assuntos que tratam, que não estão engajadas nas intensas pesquisas que vêm sendo feitas sobre língua e ensino de língua no Brasil nos últimos quarenta anos e que têm produzido frutos importantíssimos.
Por que é necessário reagir a essas publicações?
Essas publicações fazem parte daquilo que eu tenho chamado de
Seus autores querem ser mais realistas do que o rei, dizem se inspirar na tradição gramatical, mas o que realmente fazem é oferecer um modelo de
Essas pessoas cultuam e tentam difundir aquilo que o linguista Carlos Alberto Faraco chama de norma “curta”, que é muito mais uma ideologia
Você poderia dar exemplos dessa “norma curta” ou desse “charlatanismo”?
Admite, no entanto, VOZ PASSIVA: ‘Sofreste tanto que até perdeste a consciência do teu império; estás pronta a obedecer; admiras-te de seres obedecida.’ (Machado de Assis)”.
Outro exemplo: no Manual de Redação e Estilo do jornal O Estado de S.Paulo aparece o seguinte: “Ela era ‘meia’ louca. Meio, advérbio, não varia: meio louca, meio esperta, meio amiga”. No entanto, no dicionário Aurélio, encontramos, no verbete “meio”, a seguinte explicação: “Há muitos exemplos, no português antigo como no moderno, desse advérbio flexionado (caso de concordância por atração)”, e ele oferece de novo exemplos tirados da obra de Machado de Assim: "a cabeça do Rubião meia inclinada", além de Eça de Queirós e Luís de Camões.
É o caso da gente perguntar então se deve confiar num filólogo com profundo conhecimento da história da língua e da tradição literária ou num jornalista sem nenhuma formação específica (caso do falecido Eduardo Martins, autor do manual do Estadão).
Quando se trata de sala de aula, a situação é ainda mais grave: confiamos nos autores dos livros didáticos ou no Aurélio, no Houaiss, no Celso Cunha, no Evanildo Bechara? Isso para mencionar apenas gramáticos e dicionaristas filiados à tradição normativa. Se entrarmos no campo da linguística científica, a coisa fica ainda mais séria.
Quais as diferenças então entre essa “norma curta” e a verdadeira “norma culta”?
Mas definir a “norma culta” já é bem menos fácil. Isso porque esse rótulo é aplicado, sem distinção, a duas coisas muito diferentes. A primeira delas é um conceito muito antigo, que existe no mundo ocidental há mais de 2.500 anos. É a ideia de que a língua “certa”, “boa”, “bonita” se encontra no trabalho estético dos maiores escritores do passado, os chamados “clássicos da língua”.
Essa ideia está presente na expressão “imitação dos clássicos”, que sempre esteve presente nos projetos educacionais das grandes línguas. Para você ser “alguém na vida”, é preciso escrever como Eça de Queirós e Machado de Assis. Não só escrever, mas falar também. Essa é a noção de “língua culta” que aparece, por exemplo, na gramática de Celso Cunha e Lindley Cintra.
Lá eles escrevem que sua gramática quer descrever a língua culta, “isto é, a língua como a têm utilizado os escritores portugueses, brasileiros e africanos do Romantismo para cá”. Esse é um conceito muito estreito e estrito de
Para evitar confusões, os linguistas preferem chamar esse modelo de
Esse é o primeiro conceito de “norma culta”. E qual é o segundo?
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Esse conceito de norma culta se apoia em pesquisas, em coleta de dados e em análises feitas sob perspectivas teóricas consistentes. Desde os anos 1970 existe no Brasil um grande acervo de língua falada culta, milhares de horas de gravações da fala de brasileiras e brasileiros de diversas regiões do país, de diferentes profissões, de faixas etárias diferentes, mas todas e todos com curso superior completo e elevado grau de letramento.
É o acervo do Projeto NURC (Norma Urbana Culta). Todo esse material tem sido estudado atentamente. Centenas de pesquisadores vêm se debruçando sobre ele para comporem um retrato minimamente fiel da norma culta brasileira contemporânea. E já começaram a publicar uma Gramática do português culto falado no Brasil. |
Mas essa norma culta, pelo visto, só diz respeito à língua falada. Como fica a língua escrita?
Essa visão distorcida nasceu de comparações equivocadas: as pessoas comparam a fala mais espontânea, descontraída, informal, com textos altamente formais, literários etc. Mas, quando comparamos fala informal com escrita informal e fala formal com escrita formal, as semelhanças são muito maiores do que as diferenças. Conhecendo bem a
O quê, por exemplo?
Isso é tão natural e já está de tal modo enraizado na nossa fala, incluindo a fala de pessoas altamente letradas, que ninguém (ou praticamente ninguém) estranha essa não concordância. Ora, como o
Num artigo assinado por linguistas brasileiros e publicado numa revista internacional encontrei o seguinte exemplo: “só resta ao professor de português duas opções”. A língua muda o tempo todo. Essa não concordância representa uma mudança na língua, uma mudança já bem instalada e, por isso, é impossível reverter a situação.
Essa inovação já pertence à língua materna de todos os brasileiros. Em vez de tentar dar murro em ponta de faca, é mais tranquilo e sereno admitir que agora existem duas regras de concordância com o sujeito posposto ao verbo: “chegou as férias” ou “chegaram as férias”. E vamos cuidar de outras coisas, mais importantes e mais urgentes.
De acordo com o que você disse até agora, a norma “curta” aparece nos livros didáticos e nas obras produzidas por não especialistas, enquanto a norma-padrão se encontra nas gramáticas e nos dicionários tradicionais. E a norma culta real, contemporânea? Onde é que podemos encontrá-la, por exemplo, no caso de uma dúvida sobre como falar ou escrever?
Felizmente, os linguistas profissionais começaram a se dar conta de seu papel político e de seu compromisso social e passaram a produzir obras importantes, com muita consistência teórica, descrevendo o português brasileiro culto contemporâneo. Hoje em dia, não podemos mais dizer, como se dizia quinze, vinte anos atrás, “vocês, linguistas, criticam a tradição gramatical mas não colocam nada no lugar dela”.
Já colocamos. Agora é a vez de professoras e professores e outras pessoas comprometidas com a educação linguística se debruçarem sobre esse material, estudá-lo e promover uma transformação do objeto e do objetivo de ensino de língua nas escolas.
Que obras são essas?
Mas são obras acessíveis a um público não especializado?
O fundamental, eu acho, é que sobretudo as autoras e os
Os livros de História, Geografia, Ciências, Matemática etc. são sempre atualizados de acordo com as novas descobertas dessas áreas de conhecimento. Por que só em Português temos que continuar a ensinar equívocos conceituais como “sujeito é o ser sobre o qual se declara alguma coisa”? Ou a insistir na existência de uma “voz passiva sintética”, que nunca existiu de fato?
Mas, retomando a pergunta anterior: e para a pessoa não especializada que tiver alguma dúvida?
Eu recomendo, por exemplo, o Guia de usos do português, de Maria Helena de Moura Neves, e também o ABC da língua culta, de Celso Pedro Luft. São obras organizadas em verbetes, isto é, como se fossem dicionários, em que os fatos gramaticais que causam as dúvidas mais frequentes são examinados, descritos e explicados.
Nessas obras, as
Também posso recomendar a minha Gramática de bolso do português brasileiro, que é uma versão bem sintética e reduzida da Gramática pedagógica do português brasileiro.
E o Não é errado falar assim?
A palavra chave desse livro é