Lingua_fator-de-identidade

 

 

“No uso da língua, não se tem apenas atos de dizer, mas atos de fazer.”

 

 

Fator de identidade

 

Ainda não foi feita, mas seria esclarecedora uma investigação sobre o desenvolvimento da Linguística no século XX na sua relação direta ou indireta com os manuais e materiais de ensino de língua. Se formos observar o que ocorria no final do século XIX no ensino de língua e que perduraria até os anos 1940, particularmente no Brasil, veremos que inexistem manuais ou gramáticas pedagógicas tais como as que conhecemos hoje.  A denominação da disciplina “Português” ou “Língua Portuguesa” só passou a existir nas últimas décadas do século XIX, sendo que “até então, a língua era estudada na escola sob a forma das disciplinas GramáticaRetórica Poética” (ênfase acrescida). O ensino de língua, durante o Brasil-Colônia, “restringia-se à alfabetização” e quando se prolongava um pouco mais era para “o estudo da gramática da Língua Latina, da retórica e da poética” (Soares, 1998: 54).

 

Com a Reforma Pombalina, em 1759, deu-se início ao estudo da Língua Portuguesa no mesmo estilo da Língua Latina: Gramática, Retórica e Poética, imitando os bons escritores. Para tanto, existiam os florilégios, seletas e as famosas antologias com seleção de textos clássicos da literatura. Magda B. Soares (1998:55) cita a Antologia nacional, de Fausto Barreto Carlos de Lae, publicada em 1895 e que até os anos 1960 teve 43 edições. Também havia a Gramática expositivade Eduardo Carlos Pereira, publicada em 1907 com dezenas de edições. Nos anos 1940, foram editadas muitas gramáticas, tais como O idioma nacionalde Antenor NascentesGramática normativa da língua portuguesade Francisco da Silveira BuenoGramática metódica da Língua Portuguesade Napoleão Mendes de Almeida. Será só nos anos 1960 que gramática e antologia constituirão um único livro. Seguiam-se os preceitos da Filologia, que comandava então o estudo da língua. A ideia era a de que a língua formava um grande quadro da identidade nacional e era o depositário da cultura nacional. E esta se expressava na Literatura de um povo, que devia ser imitada. Era ainda o ideal greco-latino do ensino de língua. Na língua estaria o patrimônio e a pátria de um povo, e até mesmo a visão de mundo que o animava, tal como postulara Humboldt. Em certo sentido, isso perdura ainda hoje nas Academias e nas visões mais conservadoras, que não admitem outro ensino a não ser o da língua dita padrão e exemplar de nossos melhores e mais consagrados autores.

 

 

Forma de ação

 

É nos anos 1960, também, que se chega à fantástica descoberta de que com a língua não apenas se diz, mas se age. É com John Austin que uma determinada pragmática (Teoria dos Atos de Fala) surge com força vital e vem mostrar a língua como uma forma de ação. Com a língua pode-se agir. É a visão da língua como fenômeno não apenas envolvido na situação social e reproduzindo em certo sentido a variação social em suas formas, mas é a visão da língua em funcionamento diretamente ligado a contextos situacionais e não apenas sociais e cognitivos.

 

Linguagem como ação interativamente desenvolvida é uma ideia chave que surge no contexto da teoria dos atos de fala e numa perspectiva explicativa das ações intencionais com a língua. No uso da língua, não se tem apenas atos de dizer, mas atos de fazer.

 

pragmática dos anos 1960 desenvolve-se rapidamente, mas não entra no ensino num primeiro momento, tendo em vista sua origem complexa no seio da Filosofia Analítica da Linguagem. Além disso, a pragmática dos atos de fala se desenvolve numa perspectiva formal e considera atos isolados de situações socialmente relevantes. Seu potencial não e traduzido para situações sociais do dia a dia.

 

Muitas são, no entanto, as pragmáticas, e não uma só. A mais importante e influente foi de início a desenvolvida por Austin e completada por Searle, mas em seguida sobrevém-lhe a pragmática conversacional de P. Grice, que assume importância muito grande e será em maior parte adotada pela Teoria Literária e também pelos pragmaticistas de linha cognitivista que lidam com processos de compreensão. É curioso que a teoria dos atos de fala venha a frutificar de modo especial na teoria da ação linguística, e a teoria das implicaturas gricianas vai influenciar particularmente na teoria da compreensão linguística, embora ambas sejam propostas de análise pragmática da língua. Sob um ponto de vista prático, mesmo tendo em conta o alto potencial de ambas, elas ainda não se converteram em tecnologia adequada ao ensino. Permanece um desafio teórico transformar as pragmáticas em algo aplicável ao ensino de língua. A escola é um microcosmo do universo comunicativo maior do dia a dia. Ali estão muitas das diferenças que se manifestarão depois em outros contextos comunicativos.

 

É curioso que a observação da variação sociolinguística e também estrutural das línguas tenha conduzido, na área de ensino de língua estrangeira, a uma série de metodologias de investigações que redundaram, entre outras coisas, na análise contrastiva do ponto de vista sociocultural. As análises contrastivas dos diversos matizes, tal como desenvolvidas entre os anos 1960-1980, serviram muito aos estudos de tradução, ensino de segunda língua, aquisição de língua bilinguismo.

 

Na realidade, trata-se de uma investigação que tem em vista interesses teóricos e aplicativos. Os interesses aplicativos prevaleceram nos anos 1970, preocupados com os contrastes essencialmente estruturais, mas também com o contraste categorial e funcional das línguas, os mais interessantes no ensino.

 

Este post foi extraído de O PAPEL DA LINGUÍSTICA NO ENSINO DE LÍNGUAS, Conferência pronunciada por Marcuschi no 1º ENCONTRO DE ESTUDOS LINGUÍSTICO-CULTURAIS DA UFPE, Centro de Artes e Comunicação, Recife, 12 de dezembro de 2000.