A ideia de que existe certo e errado na língua está enraizada no genoma da cultura dita ocidental. A disciplina que hoje chamamos gramática (ou gramática tradicional, como é costume chamá-la nos estudos linguísticos) se sistematizou em meados do século 4 antes da nossa era, graças ao trabalho dos eruditos de língua grega que trabalharam na célebre Biblioteca de Alexandria, no Egito. São, portanto, uns 2.500 anos de história, e eu brinco dizendo que a gramática é uma “religião” mais antiga que o cristianismo, o que faz as pessoas considerarem os compêndios gramaticais como livros quase sagrados, merecedores de toda reverência, e seus autores como uma casta de sacerdotes de uma seita esotérica.
O intuito dos gramáticos alexandrinos (chamados filólogos, ‘amigos da palavra’ ou ‘amantes do conhecimento’) era fixar uma norma para a língua grega, que tinha se tornado o veículo geral de comunicação entre muitos povos de línguas diferentes, numa vasta área que incluía a Grécia, a Turquia atual, todo o Oriente Médio e o Egito. Fixar uma norma significa, inescapavelmente, fazer escolhas, e fazer escolhas significa, inevitavelmente, descartar tudo o que sobra depois de feita a seleção. O que a norma seleciona então passa a ser o certo, o correto, o aceitável, enquanto o que não entra na norma é o anormal, o equívoco, o que deve ser evitado. A palavra latina norma designava o esquadro, o instrumento de aferição usado pelo carpinteiro. Não por acaso dizemos que uma coisa está “fora de esquadro” quando não corresponde ao que se esperaria que fosse.
Mas eis que chega o século 19, um século importantíssimo sob todos os aspectos no que diz respeito às grandes transformações ocorridas na história europeia. Os progressos tecnológicos se multiplicaram em ritmo nunca antes conhecido, a partir da chamada Revolução Industrial, e muitas das áreas de conhecimento que hoje rotulamos de ciências se estabeleceram naquele período ou adotaram princípios e métodos rigorosos, em contraposição com o que se fazia anteriormente nelas. É nesse século 19 que nasce a linguística dita “científica”.
Tal como as demais ciências modernas, a linguística se sistematizou como uma disciplina descritiva-explicativa, interessada em observar, descrever e interpretar todo e qualquer fenômeno da linguagem humana, e não apenas aqueles secularmente tidos por “bons” ou “corretos” em línguas específicas. Essa mudança de perspectiva foi bastante radical com relação ao que se fazia até então quando o assunto era língua. Em vez de descartar os chamados “erros”, o pesquisador via (e vê) neles um material precioso para estudar o fenômeno que mais ocupou os linguistas do século 19: a mudança linguística, a história das línguas, desde o seu passado mais remoto até os dias atuais. Desse modo, para entender por que o latim genuculu- se transformou no português joelho ou por que o latim avicellu- se transformou no francês oiseau (‘pássaro’), não fazia (não faz) sentido dizer que foi porque os povos que vieram a ser chamados de português e francês falavam latim “errado”, “assassinavam” o latim ou “arruinavam” a bela língua de Cícero, Virgílio e Horácio. A observação atenta e a formulação teórica adequada mostraram que todo e qualquer suposto “erro” tem sua razão de ser, tem uma explicação plausível, pode ser agrupado em conjuntos semelhantes de fatores, o que comprova que existe uma regularidade (e até uma previsibilidade) nas mudanças linguísticas, regularidade constatada na comparação entre línguas das mais diferentes famílias e tipos ao longo do tempo.
No caso das mudanças fonéticas, ou seja, ocorridas nos sons das línguas, por exemplo, a explicação está num fato banal: todos os seres humanos dispomos dos mesmos dispositivos físicos que nos permitem emitir sons — lábios, língua, boca, dentes, nariz, palato, laringe, faringe, pulmões… —, de modo que as regularidades das mudanças fonéticas se verificam mundo afora, em línguas sem nenhum parentesco entre si. Assim, em incontáveis línguas do mundo, a presença de uma vogal [i] depois de [d] e [t] levou e leva à palatalização dessas consoantes, como na maioria das variedades do português brasileiro em que dia e tia se pronunciam como “djia” e “tchia”, ou como no inglês antigo kirk que se transformou em church (‘igreja’), ou ainda na passagem do latim diurnu- a giorno (‘dia’) em italiano, com um gi- que se pronuncia “dji”. De igual modo, as sílabas ke- e ki-, por causa do caráter palatal das vogais [e] e [i], tendem a se transformar em tse/tsi, em tche/tchi, em se/si ou na interdental que se escreve th em inglês (como em think). Por isso é que, em português (e outras línguas), temos um som [k] em casa, comida, cura, mas [s] em cena e cinema — o uso da letra c nesses casos é mera servidão etimológica, e na fase mais antiga da língua ce- e ci- se pronunciavam [tse] e [tsi].