Por que a sociedade precisa de professores e professoras (bem)formados em Letras

A reflexão sobre a língua vai muito além da norma-padrão: é um campo científico que revela usos, funções sociais e desmistifica preconceitos. Este texto convida a repensar o ensino e a visão sobre o português.

Benedito Gomes Bezerra [UFPE, Unicap, PE]

2/1/20255 min read

A reflexão sobre as línguas não é nova, é milenar, mas seu estudo cientificamente embasado é extremamente jovem, acaba de completar um século. Sobre as línguas, e sobre a língua portuguesa, em particular, reina ainda muita ignorância. Sabe-se bastante sobre a estrutura gramatical da língua, mas pouco sobre os fenômenos sociais de uso dessa língua. Estes clamam por explicações bem fundamentadas na ciência, e não apenas guiadas por juízos de valor subjetivos e dogmáticos.

Apesar de que muitos se queixam da dificuldade de aprender as regras da gramática normativa da língua portuguesa e até, por causa disso, pensam que “não sabem” português, o maior problema nessa área é a ignorância sobre as funções sociais da língua. Por incrível que pareça, nem os intelectuais e profissionais da mídia de maior destaque na sociedade brasileira demonstram compreender efetivamente o que é e como funciona uma língua. Talvez por isso mesmo é que Sírio Possenti diz que esses profissionais leem as gramáticas como fundamentalistas leem seus livros sagrados, ou seja, procurando identificar neles os erros dos infiéis, a fim de condená-los ao fogo do inferno.

Apesar de lhes faltar os elementos necessários para uma concepção científica da língua, a maioria das pessoas, especialmente aquelas dotadas de elevado status social, se acha perfeitamente habilitada a emitir juízos condenatórios sobre os “maus usos” da linguagem, em geral atribuídos a grupos socialmente desfavorecidos. Como “cegos guiando cegos”, esses autoproclamados patrulheiros e guardiões da língua reproduzem preconceitos e incutem na mente da população em geral uma visão pré-científica do que significa uma língua e do que significa utilizá-la no dia a dia. Nada sabem sobre língua, mas pensam que sabem, e as pessoas mais simples, ingenuamente, acreditam que eles sabem, e assim seguem a tortuosa doutrina gramatical emanada de jornalistas e outros profissionais a quem se dá espaço na televisão, no jornal, no rádio, na internet.

Embora possa parecer estranho, falar de uma ignorância generalizada sobre a língua não é absurdo. Absurdo é todos acharem que podem opinar sobre certo e errado em matéria de língua, sem terem estudado linguística, sem terem estudado literatura (aliás, quem conhece as ciências da linguagem não se orienta pelas noções de certo e errado). É como se todos nós saíssemos por aí prescrevendo medicamentos sem termos estudado medicina. Como se abríssemos um consultório de psicoterapia sem termos estudado psicologia. Como se nos puséssemos a restaurar dentes sem termos cursado odontologia. Como se tentássemos atuar como advogados sem o curso de direito. No caso específico das atividades profissionais acima, se não bastasse o bom senso esperado das pessoas, os respectivos órgãos de classe se encarregam de impedir tais absurdos, o que não acontece com os profissionais da área da linguagem.

Óbvio, todos nós podemos, é nosso direito como membros da espécie humana, alimentar crenças intuitivas sobre nossa saúde, nossa mente, nossos dentes, nossos direitos. Mas não negamos a médicos, psicólogos, dentistas e advogados a palavra mais abalizada sobre essas questões. Não entregamos nossa saúde, nossa mente, nossos dentes, nossos direitos nas mãos de qualquer curioso. Com as questões atinentes à língua e à linguagem deveria ser diferente?

No entanto, ironicamente, as pessoas mais habilitadas a opinar sobre língua são as menos procuradas para isso. A língua, embora muitos, inclusive professores de português, pareçam não se dar conta disso, é objeto de estudo científico e não apenas de doutrinamento sobre usos “certos” ou “errados”, “feios” ou “bonitos”, que “doem nos ouvidos” ou “soam bem”. Portanto, se queremos algum esclarecimento sobre fenômenos linguísticos, as pessoas ideais a serem consultadas são os cientistas da linguagem, os sociolinguistas, os analistas do discurso, os linguistas de texto, enfim, os linguistas em geral. Entretanto, se olharmos para a mídia, sempre que estoura alguma polêmica sobre linguagem, não são esses os profissionais que têm maior proeminência nos debates.

Em virtude disso, o preconceito linguístico impera e alastra-se como uma mancha despercebida ou convenientemente ignorada. Uma mancha, entretanto, que deveria ser eliminada para o bem da maior parte da população brasileira, a parcela social e economicamente menos favorecida.

O fim da ignorância sobre a língua, acompanhado do fim do preconceito linguístico e da exclusão pela linguagem, só pode ser atingido por meio do ensino esclarecido e esclarecedor, ou pelo menos este parece ser o caminho mais eficaz. Há uma necessidade urgente, para isso, de superação da discrepância entre as relativamente avançadas premissas estabelecidas pelas diretrizes oficiais de ensino e as práticas efetivas de ensino de língua portuguesa. De acordo com essas diretrizes, é preciso, essencialmente, ensinar língua portuguesa a partir de textos produzidos em situações reais de uso, em diferentes gêneros, e contemplando as diversas variedades sociais da língua, e não apenas a norma estabelecida como padrão pela e para a elite brasileira.

Essa elite alardeia, na grande mídia, seu escândalo hipócrita porque os alunos na educação básica e até na universidade não “sabem” português (entenda-se, norma-padrão) e, pior e realmente sério, não desenvolveram adequadamente suas habilidades de leitura, não são bons escritores. Como se essa mesma elite nacional fosse feita de grandes escritores, de leitores proficientes, o que não é verdade. Em sua maioria, os autoproclamados guardiões do “português correto” são pessoas sem formação nessa área e tremendamente ignorantes sobre o fenômeno científico da linguagem. São cegos guiando cegos em todos os sentidos possíveis.

Esse é o contexto em que o profissional de Letras deverá exercer sua atividade como professor de língua e/ou de literatura. Esse é o seu papel único. O professor e a professora formados em Letras são os únicos profissionais que detêm em profundidade o saber sobre a língua, são os únicos que, na universidade, tiveram o privilégio de investigar a fundo a língua e os fenômenos linguísticos com base em procedimentos científicos mundialmente estabelecidos e reconhecidos. É essa, por outro lado, a sua responsabilidade: honrar, defender e propagar o saber científico sobre a língua através de uma prática de ensino que se mostre esclarecedora e libertadora, que proporcione aos alunos o exercício crítico da cidadania, como diz o jargão pedagógico, também no que concerne ao uso da língua materna, seu maior e mais fundamental patrimônio como membro da espécie humana.

Particularmente, é isso que espero de meus alunos e alunas do curso de Letras, após quatro anos de muito estudo. Espero sempre que um ex-aluno meu jamais reduzia sua atividade profissional à reprodução do ensino tradicional com todos os seus defeitos e limitações e, principalmente, com suas distorções no que diz respeito à concepção de língua com todas as suas implicações.

Para fazer tudo isso, os novos professores e professoras precisarão, claro, ser professores e professoras melhores que seus professores de linguística, melhores que seus professores de literatura, melhores do que todos os seus professores. Se querem retribuir-nos o que aprenderam, se querem honrar o próprio nome de vocês como professores e professoras e, mais que isso, como pessoas, se querem honrar o nome de seus professores, o nome de sua Universidade, o nome de seu Estado, o nome de seu país, devem nos superar, pois, conforme dizia Nietzsche, brilhantemente, “retribui mal a um mestre quem sempre permanece apenas discípulo”. Portanto, superem-se, superem-nos, e assim valerá a pena cada dia de aula, cada encontro, cada minuto que vivenciamos ao longo do curso de Letras.