O LIVRO QUE SAUSSURE NÃO ESCREVEU

A leitura crítica do Curso de Linguística Geral revela que muitas ideias atribuídas a Saussure já existiam há séculos e foram apagadas da tradição. Este texto desmonta a mitificação do CLG e recoloca a história da linguística em seu verdadeiro contexto.

LINGUÍSTICA

Marcos Bagno

(e por que é preciso lê-lo)

Faz quarenta anos que iniciei minha relação com o Curso de linguística geral, publicado em 1916 sob o nome de Ferdinand de Saussure (1857-1913). Fui lendo e relendo o livro ao longo dessas décadas, não porque encontrasse nele o “corte epistemológico”, a mudança radical de paradigma tão propalada pelos estruturalistas e por muita gente até hoje, apesar das críticas que terminaram por relegar o estruturalismo a uma – importante – fase da história do pensamento ocidental sobre a linguagem. Tendo-me formado na esteira dessas críticas, a leitura do Curso me ajudava a encontrar justificativas para elas.

A partir da década de 1960 ocorreu a chamada “virada pragmática”, em que surgiram diversas abordagens que incluíam nos estudos linguísticos o contexto social de uso da linguagem, as implicações políticas e ideológicas da atividade linguística, as relações de poder conquistadas e manipuladas graças à língua etc. Deixou-se de lado a tese da “língua em si mesma e por si mesma” (últimas palavras do Curso de linguística geral) como um sistema autorregulador que pode e deve ser estudado sem recurso a nenhum fator externo a tal sistema – segundo o linguista polonês Jerzy Kuryłowicz (1895-1978), por exemplo, o uso de explicações externas para mudanças internas é um “descarrilamento teórico”. As novas abordagens insistiam (e insistem) na impossibilidade de estudar as línguas sem estudar conjuntamente as pessoas que as falam em seus ambientes sociais, políticos, ecológicos etc. A principal crítica dirigida ao estruturalismo era justamente a falta dessa perspectiva social.

Para aprofundar ainda mais minha relação com o Curso de linguística geral (CLG), empreendi uma nova tradução do livro, acompanhada de muitas notas ao texto e de um longo posfácio crítico, em que debato a ideia de que Saussure teria sido o “pai da linguística moderna”. Essa nova tradução foi publicada em 2021, cinquenta anos depois da primeira realizada no Brasil. https://www.parabolaeditorial.com.br/curso-de-linguistica-geral

Nunca é demais lembrar que Saussure não escreveu o CLG, publicado três anos depois de sua morte. O livro foi preparado por dois de seus ex-alunos e colegas na Universidade de Genebra: Charles Bally (1865-1947) e Albert Sechehaye (1870-1946). Eles se valeram das anotações das pessoas que frequentaram os cursos de linguística geral ministrados por Saussure junto com anotações do próprio mestre. O resultado é uma obra problemática, repleta de interpolações dos editores, organizada segundo critérios pouco claros. Por isso é que o CLG é objeto de críticas textuais há mais de cem anos, tentativas de identificar o que está ali de verdadeiramente “saussuriano”.

O grande especialista da historiografia linguística E. F. K. Koerner (1939-2022), que dedicou sua tese de doutorado (de 1971) a rastrear as fontes teóricas do CLG, admitiu, em 1984: “hesito ... em falar do Curso de Saussure como se ele fosse o autor desse livro. Além do fato de ter sido publicado sem o imprimatur de Saussure – pelo que conhecemos de Saussure, ele se oporia a esse projeto –, os editores, Charles Bally (especialmente) e Albert Sechehaye, introduziram tantas mudanças às anotações dos alunos à sua disposição quando compilaram o texto que disso resultaram diversas afirmações que estão de fato em clara discordância com o posicionamento de Saussure”.

É isso que tem me levado a fazer críticas, não ao linguista Saussure, mas ao CLG como uma obra que não é fiel a suas ideias sobre a linguística geral. Saussure, ao contrário da lenda corrente, não provocou uma ruptura com a linguística histórico-comparativa do século 19, ao contrário: seu monumental trabalho sobre as vogais do indo-europeu, o Mémoire publicado em 1878, é considerado até hoje como a realização teórica mais importante produzida dentro daquele paradigma histórico-comparativo. Mas quem aprende sobre o Mémoire nas aulas de introdução à linguística?

Volta e meia me surpreendo com as tentativas que muitas pessoas fizeram e fazem de extrair do CLG coisas que não estão lá ou que eu, pelo menos, por alguma deficiência de leitura talvez, não consigo ver. Recentemente brinquei com um amigo dizendo que em breve vão dizer que Saussure foi precursor da mecânica quântica ou da teoria do caos... Felizmente não estou sozinho nisso, pois, ao lado dos “saussuristas” mais devotos, existe também uma respeitável comunidade de estudiosos que não aderem à narrativa um tanto mistificadora que se teceu em torno do linguista suíço e de sua não-obra.

A fetichização do CLG e, por conseguinte, de seu não-autor, provocou um apagamento injusto de toda a enorme produção intelectual realizada ao longo do século 19 pelos linguistas praticantes do método histórico-comparativo, predominantemente alemães, gerações de teóricos responsáveis por dar aos estudos da linguagem seu caráter científico, levando mesmo à institucionalização da linguística como área de conhecimento com lugar próprio no sistema universitário. Os estruturalistas se empenharam em mostrar que a verdadeira linguística “moderna” tinha começado em 1916 com a publicação do CLG e que todo o trabalho anterior era algo obsoleto. A alegação era de que o método histórico-comparativo se ocupava da “diacronia”, do passado das línguas, e que agora era preciso estudar as línguas tal como existem hoje, na “sincronia”. Essa dicotomia só pode ser endossada por quem não sabe que ela já figurava na obra de autores do século anterior. Mas a leitura desses autores foi abandonada, de modo que as “teses” estampadas no CLG passaram a ser vistas como insights inéditos, como “estalos” na mente incomum de Saussure. Como vamos ver adiante, isso está longe de ser verdade.

O linguista romeno Eugeniu Coșeriu (1921-2002) escreveu, num artigo publicado em 1967: “A história da linguística teórica é uma história bem estranha: é muito frequentemente uma história sem continuidade, que só conhece seu passado recente e que ignora seu passado mais distante. Mesmo as teorias mais ou menos conhecidas e discutidas são, com frequência, desconhecidas em suas conexões históricas”. E cita explicitamente o caso de Saussure, cujos postulados pretensamente inéditos Coșeriu demonstra estarem presentes em teóricos anteriores a ele. Os manuais introdutórios à linguística se concentram obsessivamente nas dicotomias “saussurianas” (língua/fala, significante/significado, relações sintagmáticas/relações associativas, sincronia/diacronia), que, nas palavras do mesmo Coșeriu, são “distinções todas que Saussure encontrou na tradição” e que, portanto, “ele não foi o primeiro a formular”.

Vejamos, por exemplo, a tese da arbitrariedade do signo linguístico, isto é, a inexistência de qualquer vínculo entre a palavra e o conceito que ela designa: a noção de “rio” se exprime como flumen em latim, potamos em grego, pará em tupi, nzadi em quicongo etc. Nada nessas palavras exibe um vínculo “natural” com o que elas designam.

Do modo como a tese é apresentada nos manuais introdutórios, fica-se com a impressão de que Saussure foi seu principal formulador, quando não o primeiro. Vamos ler, no entanto, a seguinte afirmação: “Na língua ... os agentes fundamentais são seres inteligentes, o material não é apenas o som articulado – que poderia, em certo sentido, ser considerado um produto físico –, mas o som que se torna o significante do pensamento”. A simples presença do termo significante faria essa citação caber perfeitamente no Curso de linguística geral. Elas estão impressas, no entanto, num livro, publicado em 1875 pelo estadunidense William Dwight Whitney (1827-1894), autor que é citado (sumariamente) no CLG, mas deixado de fora dos manuais introdutórios da disciplina.

Whitney publicou dois livros de divulgação científica: Language and the Study of Language (1867) e o já citado The Life and Growth of Language (1875). No primeiro livro, o adjetivo arbitrary (‘arbitrário’) aparece 30 vezes, quase sempre em relação a sign (‘signo’), enquanto no segundo livro são 13 vezes. Um exemplo entre muitos, da primeira obra: “Toda forma existente de fala humana é um corpo de signos arbitrários e convencionais para o pensamento, transmitido pela tradição”. Para Whitney, a língua só existe “nas mentes e bocas daqueles que a usam”, uma conceitualização binária em que “mente” está para significado assim como “boca” está para significante.

Whitney foi influenciado pelo importante filósofo inglês John Locke (1632-1704). Em seu Ensaio acerca do entendimento humano (1689), Locke dedica todo um capítulo à linguagem, e é ali que se pode ler: “[N]a medida em que as palavras são de uso e significado, na medida em que há uma conexão constante entre o som e a ideia, e uma designação de que um significa a outra, sem isto a aplicação delas [das palavras] nada mais seria que ruído sem significado. Seu significado, perfeitamente arbitrário, não é consequência de uma conexão natural”.

Recuando mais de mil anos, topamos com santo Agostinho (354-430), filósofo que representa a transição entre a antiguidade pagã e o cristianismo recém-oficializado no Império Romano. Pois Agostinho escreveu:“A palavra consiste de som e significado. O som pertence aos ouvidos e o significado, à mente. Não crês, portanto, que na palavra, como em qualquer criatura viva, o som é o corpo e o significado é, por assim dizer, a alma do som?”. Mais adiante, Agostinho afirma que o significado é fixo (tal como a alma é eterna e imortal), enquanto o som, isto é, a palavra em sua forma falada (corporal), varia de uma língua para outra, ou seja, que a relação entre som e significado é... arbitrária.

Podemos recuar ainda mais e convocar Aristóteles (384-322 aec). Segundo ele, as coisas do mundo provocam em nós “impressões na alma”, que assumem nela a forma de representações (ou conceitos), que, por sua vez, são expressos na forma de palavras escritas ou faladas. Assim como as palavras escritas diferem entre os povos que têm escrita, também as palavras faladas diferem entre os povos – as representações mentais, no entanto, são as mesmas. De novo: se há conceitos idênticos e palavras diferentes, é porque a relação entre conceitos e palavras é arbitrária.

Aristóteles, ao afirmar a arbitrariedade das palavras, tenta resolver o dilema enunciado por seu mestre Platão (428/427-349/347 aec). Em seu famoso diálogo Crátilo, Platão expõe as duas teses em disputa na filosofia de seu tempo: se as palavras derivam da própria realidade empírica (se tem, portanto, um vínculo com a natureza das coisas) ou se, ao contrário, decorrem da convenção estabelecida entre o som e a ideia pelos falantes da língua. O diálogo termina sem resolver a disputa, sobretudo porque seu tema principal era a busca da Verdade, que, segundo o filósofo, não pode ser alcançada pela linguagem.

Entre o Curso de linguística geral e o Crátilo de Platão há uma corrente contínua de quase 2.500 anos, ao longo da qual a tese da arbitrariedade do signo linguístico, em seu caráter binário, vem sendo debatida e, na maioria dos casos, defendida por muitos (eu diria até a maioria) dos que se dedicaram a refletir sobre ela. Apresentá-la como uma ideia formulada por Saussure implica, portanto, apagar toda essa longuíssima tradição e criar uma ilusão de ineditismo.

No posfácio que incluí em minha tradução do CLG, faço diversas comparações entre trechos do livro e passagens extraídas da obra de outros autores, especialmente de Whitney e do alemão Hermann Paul (1846-1921). Muitos desses trechos do CLG são paráfrases quase literais do que se encontra na obra de Paul. Só um exemplo:

· Hermann Paul: “Todos os processos mentais ocorrem nas mentes individuais e em nenhum outro lugar. Toda criação linguística é obra de um único indivíduo”.

· CLG: “Nada entra na língua sem ter sido experimentado na fala, e todos os fenômenos evolutivos têm sua origem na esfera do indivíduo.

Hermann Paul é autor de uma obra, Prinzipien der Sprachgeschichte (Princípios de história da língua, 1880), que foi durante décadas o mais importante manual de linguística usado nas universidades europeias. Com a sagração do Curso de linguística geral como texto fundador de uma suposta “linguística moderna”, o nome de Paul e sua obra foram relegados ao porão da história, mas basta uma crítica textual atenta para ver o quanto de Paul existe no Curso sem os devidos créditos.

A mitificação de Saussure como iniciador de um novo paradigma dos estudos linguísticos se deve também em parte a um fator ideológico importante: a germanofobia surgida na virada do século 19 para o 20, isto é, uma rejeição de tudo o que fosse alemão. A linguística do século 19 foi praticamente toda dominada por estudiosos de língua alemã. A língua alemã gozava de enorme prestígio nos ambientes científicos e intelectuais. Mas da Alemanha também vieram investidas bélicas extremamente agressivas: a guerra franco-prussiana de 1870-1871, que teve vitória prussiana e resultou no surgimento da Alemanha como nação unificada; a I Guerra Mundial (1914-1918) e a II (1936-1945), desencadeadas pelos alemães e seus aliados.

Tudo isso levou a um profundo sentimento antigermânico compartilhado pelas sociedades europeias da primeira metade do século 20. Ninguém melhor, então, do que um teórico de língua francesa, originário da “neutra” Suíça, para ser alçado ao posto de fundador de uma nova corrente capaz de se contrapor ao peso da linguística alemã e até de substituí-la.

Apesar de todas as críticas, senão precisamente por causa delas, ler o Curso de linguística geral nesta terceira década do século 21 continua a ser uma tarefa incontornável para toda pessoa que deseja ingressar no estudo teórico rigoroso da linguagem humana em geral e das línguas particulares. Só é possível compreender os diferentes rumos que a linguística tomou nos últimos cem anos quando se leva em consideração o que esses rumos significaram de ruptura radical, de adoção e desenvolvimento ou de relativização das ideias compiladas no CLG.

No entanto, já não tem como deixar de ser uma leitura informada pela abundante exegese crítica acumulada no último século. Sobretudo, tem de ser uma leitura desapaixonada, capaz de situar Saussure entre os muitos autores que, desde o início do século 19, sinalizaram vários dos principais caminhos para a linguística moderna e pós-moderna, e não uma leitura propensa a preservar uma mitificação que não deve ter lugar em nenhum empreendimento intelectual digno do nome.

Curso de linguística geral

A investigação historiográfica e a crítica textual minuciosa visam preencher essa ausência, mas sem diminuir em nada o caráter incontornável da leitura do Curso da parte de quem deseja adentrar o vasto e complexo universo dos estudos da linguagem.

O efeito Saussure: cem anos do curso de linguística geral

Escrito para celebrar o centenário do Curso, reuniu pesquisadores brasileiros que vêm se ocupando das múltiplas faces do pensamento saussuriano. O conjunto da obra cobre vários temas relacionados ao Curso: revê aspectos de sua gênese; repassa criticamente leituras estabelecida.