Quem-inventou-a-letra-A

O princípio da escrita

 

Olho para o meu filho, de língua entre os lábios, a desenhar as letras que anda a aprender. Com esforço, vai associando aqueles desenhos pequenos, em várias formas, aos sons que já usa todos os dias há muito tempo. Reparo na letra A. Quem inventou esta forma em particular?

 

 

O “A”: a primeira de todas as letras. Quem teve o trabalho de contar diz que esta é a letra mais usada em português. Está no princípio das vogais, está no princípio do alfabeto.

 

Antes de começarmos a viagem à origem do “A”, encoste, por favor, os dedos à garganta e diga “aaaaaa”. As cordas vibram, não vibram? O som passa, a boca abre-se sem mais, a língua quieta, o som a sair sem medo e sem interrupção. Parece-nos o som básico da nossa fala.

 

Enquanto me entretenho a escrever este texto, o meu filho continua a copiar a primeira vogal, a treinar essa letra. Foi a professora que lhe ensinou. É um processo mais demorado, mais consciente, mais esforçado do que aprender a falar. O cérebro precisa de se habituar a associar um som a uma letra e a ordenar à mão que faça os gestos necessários para construir essa letra. Mas, quando consegue, nunca mais imagina o mundo sem essa ligação…

 

Peço agora ao leitor que faça uma viagem mental: pense numa criança a aprender o “A”. Pense agora na professora dessa criança a aprender o “A”, já lá vão uns trinta anos. Continuemos: imagine o professor da professora, há uns 60 anos, também a aprender o “A”. Todos aprendemos as letras através de alguém.

 

Andemos para trás no tempo. Quem terá escrito o primeiro “A”?

 

A nossa letra latina veio do alfa grego — que, aliás, na sua forma maiúscula, é perfeitamente igual à nossa letra.

 

 

Entre o grego e o latim, a letra terá passado pelo etrusco, mas o caminho é difícil de acompanhar. Sabemos, no entanto, que começou nos gregos a mania de associar este desenho ao som que todos conhecemos.

 

Agora, o desenho da letra? Esse já vinha de trás. Já vinha dos Fenícios…

 

Pegue, sem medo, no “A”. Agora vire-o ao contrário.

 

 

Que desenho é este? Imagine que as duas pernas do “A” são dois cornos. Será então fácil de imaginar ali um touro…

 

Sim, o nosso “A” descende, ao fim de uns quantos milénios, do desenho de um touro. Era a letra “aleph” (palavra que significava precisamente “touro”), uma letra fenícia que deu origem ao nosso “A”, mas também a letra correspondente no árabe e no hebraico, entre mais umas quantas línguas. Aqui está o aleph (só lhe faltam os olhos ali no meio do triângulo para vermos na perfeição um touro virado para esquerda):

 

 

E os Fenícios foram buscar este desenho a que povo? É bem provável que aos Egípcios, com os seus belos hieróglifos…

 

 

Sim, as nossas crianças a escrever com cuidado as letras do alfabeto estão a continuar uma tradição que remonta aos antigos Egípcios. Temos nas mãos a escrita dos faraós. E, com um pouco de esforço, podemos imaginar uma sucessão de gente a desenhar, com arte, touros nos papiros, nas pedras, nas paredes das cavernas:

 

 

Este touro em Lascaux não é escrita. A escrita, essa, surgiu quando começámos a associar o desenho ao som e não ao próprio objecto representado pelo desenho. É esse o princípio de qualquer sistema de escrita: se o desenho de um touro representava um touro, a certa altura começou a representar a palavra “touro” e, com mais um salto, o som da palavra — tanto que, se os mesmos sons quisessem dizer também outra coisa qualquer, podíamos usar o mesmo desenho. Um pouco como se, em português, usássemos o desenho de um banco de jardim para representar um banco onde depositamos o dinheiro — parecerá estranho, mas é uma explicação muito simplificada do sistema de escrita chinês. Parecerá também um jogo infantil, mas é assim que começamos a ligar o desenho ao som e não à ideia por trás da palavra.

 

Com o passar do tempo, o touro já não representa nem a ideia do touro, nem sequer o som da palavra “touro”, mas um som apenas, talvez o primeiro da tal palavra, um som que pode ser conjugado com outros sons para escrever mais palavras. Nasce assim, devagar, sem que ninguém a tenha inventado de um dia para o outro, a ideia do alfabeto. E, entretanto, o touro já deu a volta e está assim, de cornos para baixo, na forma do nosso simpático “A”.

 

Esta associação entre som e desenho permite simplificar o sistema de escrita. Com um número reduzido de letras, podemos representar todas as palavras. Um sistema artificial adapta-se assim à linguagem falada, bem mais natural e para a qual o ser humano parece estar biologicamente bem adaptado (nem que seja pela forma da garganta).

 

Diga-se que, se a linguagem falada pertence a quase todos os seres humanos, a escrita costumava ser feudo de alguns. Hoje praticamente todas as crianças aprendem o “A”, língua entre os dentes, dedos esforçados. Durante milénios, a larguíssima maioria da população não fazia ideia que letra era esta — mas o som, esse está nos lábios de todos.

 

Mas, já agora, qual era o som do tal aleph fenício? Já era o nosso “A”? O som original seria a de uma oclusiva glotal, um som que não existe em português (uma paragem do som na garganta, que ouvimos no árabe, por exemplo). O alfabeto fenício não tinha um símbolo próprio para o “A”. Os gregos, com uma língua cheia de vogais, precisavam de um símbolo para esse som. Foram então buscar o aleph fenício, que deixou de ser uma consoante e passou a representar a vogal que hoje encabeça o alfabeto.

 

Comecemos a andar com o filme para a frente: imaginemos um grego a aprender a escrever a letra. Séculos depois, um romano usa a mesma letra numa lápide. Continuemos pelos mosteiros medievais, olhando para os monges a copiar pacientemente um “A”. Depois, imaginemos a mesma letra nas mãos dos trabalhadores das primeiras tipografias, uma letra gravada ao contrário, um tipo pronto a sujar de tinta milhares de folhas de papel. Chegamos ao “A” a aparecer nos ecrãs dos nossos telemóveis, enquanto as crianças ainda o aprendem, devagar, na escola e em casa. Uma letra que se repete milhões de vezes todos os minutos, em todo o mundo. Pelo caminho, foi ganhando muitas formas diferentes.

 

O nosso velho “A” também pode representar outros sons e, em certas geografias, leva com vários acrescentos, desde o pequeno círculo sueco ao nosso til, passando pelo trema alemão e o pequeno rabicho polaco. Ficará para outro dia uma viagem a essas variações da nossa primeira letra…

 

Para terminar, pensemos no “A” português, ou melhor, pensemos no som que fazemos ao ver a letra: às vezes, dizemos o som com a boca aberta e sai-nos no “a” aberto. Outras vezes [especialmente no português europeu], fechamos um pouco a boca e sai um “a” fechado. Depois, se puxarmos a língua para a frente, começamos a aproximar-nos do “e” e do “i”. Puxamos a língua para trás e temos o “o”. A língua para trás e para cima, arredondando os lábios, e temos o nosso conhecido “u”. Ah, em português temos ainda as vogais nasais, a ecoar por dentro da nossa cara. Se a língua desliza de um lugar para outro, arranjamos um ditongo. Se a língua se aproxima de um certo ponto do céu da boca ou os lábios quase fecham, entramos no mundo das consoantes.

 

Na nossa cabeça, a ligação entre som e os rabiscos que usamos para o representar é tão forte que é difícil dizer “A” sem pensar num “A”. Para nós, a ligação entre o som e a letra é naturalíssima. E, no entanto, o som podia ser representado por outro símbolo qualquer — como aliás acontece em línguas como o georgiano, arménio, japonês… Nada há na natureza do som “A” que o ligue a este desenho de dois cornos virados ao contrário. O som “A” é nada mais do que uma vibração particular do ar criada pelas cordas vocais, pela língua e os lábios. Sim, o “A” é uma escultura de ar feita com a boca. Depois, há milénios, na Grécia Antiga, começámos a usar o desenho de um touro para representar esta simples escultura sonora.

 

Volto ao meu filho: com a língua entre os dentes, esforça-se por desenhar o velho touro fenício nas suas várias formas habituais em português: letra de imprensa, letra manuscrita, minúscula, maiúscula… Devagar, vai entrando no mundo da leitura e da escrita, um mundo difícil, demorado, mas — a seu tempo — um dos grandes prazeres da vida.