Produção de textos

 

Desenvolver no aluno a consciência de ‘autor’

 

O problema inicial é este mesmo: ser autor na escola. Mas, em consequência, o maior problema é ser autor de bons textos na escola, problema que, por sua vez, já inclui outra questão: saber em que consiste um bom texto; que propriedades ele deve ter; que propriedades são constitutivas e, assim, são mais importantes.

 

Pesquisas e nossa própria experiência na escola dão conta de que os resultados obtidos na área da produção de textos não correspondem ao investimento de tempo e de recursos gastos pela escola. Diante de alguns textos dos alunos, chegamos mesmo a nos perguntar o que estes alunos fizeram na escola durante onze anos de estudo de língua portuguesa?

 

Mas, vamos ao que nos interessa:

  

Como viver na escola a experiência de ser autor?

 

Em nossa sociedade, a autoria, em qualquer área, está reservada a quem cria alguma coisa, seja um objeto de arte, seja um instrumento de trabalho qualquer. No caso da produção de textos, a autoria também supõe a criação de um objeto; especificamente, de um objeto comunicativo-interativo e funcional, portanto, relevante contextualmente.

 

Mas, para isso há um pressuposto: não se pode pensar em autoria para quem não tem a consciência de ser sujeito de sua história, de seu destino; ninguém pode pensar em autoria para quem tem apenas a experiência de ser “objeto”, ou receptáculo passivo do que os outros aprenderam e que, agora, lhes passam, como dever, para cumprir um programa. A autoria exige um sujeito. Sujeito que tem alguma coisa a dizer. Em diálogo com outro. A autoria não se desenvolve sem a consciência de se ter uma palavra a dizer a outros deste mundo.

 

Logo, não se pode pensar em autoria para quem escreve frases soltas, descontextualizadas, para treinar o uso de certas categorias gramaticais. Sabemos o quanto a escola tem insistido na escrita de frases (É clássico o comando “forme frases...”).

 

A formação de frases não pode resultar em autoria, pois frases soltas não constituem objetos discursivos, no sentido da interação real, tal como acontece quando as pessoas se comunicam. E não podem constituir objetos discursivos porque lhes faltam os constituintes imprescindíveis que fazem de um conjunto de palavras um texto.

 

Vejamos, a título de exemplo, o seguinte: em 2007, surpreendi um grupo de meninos que brincavam de escola. O pequeno professor havia acabado de propor um exercício (insisto, em pleno 2007) que constava do seguinte:

 

Ditado
Vovó vai à vila.
A pipa é do papai.
O pião é do Dudu.
Vovô vê o ovo.
Lili caiu.

 

Numa análise mesmo sumária, percebemos que se trata de um conjunto de frases soltas, justapostas. Sem nenhuma espécie de continuidade: a segunda frase não retoma nenhum elemento da primeira; a terceira, da segunda, e, assim, sucessivamente. São unidades desconectadas, sem que se possa reconhecer aí nenhum tipo de unidade, de macrofunção comunicativa. Além disso, não se pode recuperar nenhum elemento do contexto em que essas coisas teriam sido ditas.

 

Por exemplo:

quem está dizendo?

A quem?

Com que intenção?

Para obter que resultado?

Em reposta a que tipo de solicitação?

É possível se formar autoria com esse tipo de produção de textos?

 

A única forma regular de efetivar a comunicação é o texto. Somente sob a forma da textualidade as pessoas interagem verbalmente. Mais: somente sob a forma do texto contextualizado, interagimos, exatamente porque somos pessoas “de carne e osso”, situadas em um tempo e em um espaço.

 

Logo, nem mesmo a mera produção de textos – descontextualizados como aquelas frases – pode desenvolver em nós essa consciência de autoria.

 

Mas o que são textos descontextualizados?

 

Uma professora me passava a lista de temas que ela havia trabalhado com os alunos:

"Comida ou infância."

"Minha família ou meu melhor amigo(a) ou planos para o futuro."

"Internet."

"Escola."

"Filmes ou livros favoritos."

"Um artista que admiro."

"Música."

"Festas."

"Super-heróis."

"O melhor professor que já tive."

"Férias."

 

A partir dessas propostas de produção textual, os alunos até podem escrever textos. Mas…

serão “autores” desses textos?

Cadê um propósito comunicativo para esses textos?

Que objetivos têm?

O que pretendem conseguir?

Para quem eles serão escritos, ou, com quem pretendem interagir?

Em que suporte o texto deverá chegar até as mãos do interlocutor: um jornal, uma simples folha de papel, um cartaz, um folder?

Sob a forma de que gênero devem escrever?

Sob a forma de uma carta?

De um comentário?

De um aviso?

Um anúncio?

Uma notícia?

Um depoimento?

 

É impossível ser autor sem preencher essas condições. É difícil até mesmo escrever o texto: com a falta de tantas definições; definições imprescindíveis para quem escreve. A linguagem é marcada, inerentemente, pela dialogicidade, pela funcionalidade, pela situacionalidade. Fora desses parâmetros, o que temos são práticas infrutíferas, inócuas, que não desenvolvem nas pessoas a competência necessária para o convívio social possibilitado pela comunicação escrita.

 

Já não é sem tempo; ou melhor, já passou do tempo de a escola tomar consciência de sua responsabilidade de criar condições para que os alunos desenvolvam as múltiplas competências em produção de textos: adequados à situação (logo, corretos, às vezes) e relevantes (expressando conteúdos significativos que interessem vivamente aos leitores presumidos).

 

Essas condições incluem:

  1. professores (bem pagos e com boas condições de trabalho!) que conheçam as teorias que explicam o funcionamento da linguagem;
  2. professores que vivam também eles a experiência de escrever textos reais e que se interessem por ampliar seus repertórios pela leitura de bons textos;
  3. professores que motivam os alunos para o desafio da produção de textos; que estimulam; que reforçam a autoestima, ou a confiança de que eles são capazes;
  4. salas de aula que possibilitam um exercício de produção, o que implica salas de aula com menos alunos, para que todos possam receber orientações adequadas;
  5. atividades de produção de textos planejadas e revisadas;
  6. focalização da produção de textos em outras questões que não apenas a correção gramatical;
  7. sedimentação da certeza de que escrever não é um dom inato; que nasce com o sujeito; mas é fruto de um trabalho persistente, continuado e perseverante de prática, prática, prática...

 

E assim nascem os autores.

 

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