Blog da Parábola Editorial

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PRECONCEITO LINGUÍSTICO E HUMOR NA INTERNET

PRECONCEITO LINGUÍSTICO E HUMOR NA INTERNET

Variação linguística e paródias nas redes sociais

 

Hoje, ao amanhecer, cedendo ao gesto já compulsivo de acender o celular, fui acordado pela mensagem: “Pra tu vê como vale tudo em nome do humô”. O link que se seguia me conduziu ao Facebook e a um vídeo no qual o humorista fazia um arremedo de aula de língua portuguesa. E que ponto ele abordava? A correção forçada da pronúncia dos termos “planta”, “problema”, “paroxítona” e “paralelepípedo”…


Ele tentava disciplinar a pronúncia desses termos, tendo por alunas sua mãe e outra pessoa cujo vínculo com ele não está determinado, todos os três de origem claramente popular. O vídeo, postado em 29 de março de 2017 às 12:10, já foi visto por mais de dois milhões de pessoas [!], foi compartilhado quase 25 mil vezes e recebeu dezoito mil comentários.


Há graça no trabalho do comediante? Alguma, especialmente se se considera que ele tem também a língua presa [anquiloglossia].


Temos de respeitar a liberdade do comediante de abordar todo e qualquer tema que escolha, em nome da liberdade de expressão e do respeito à autonomia de criação artística? Sim, claro!


A atividade artística na vertente do humor deve ser mantida a salvo de todo e qualquer tipo de censura de pensamento? Obviamente.

 

"Liberdade só para mim e para os que pensam como eu"
Me lembro de já ter traduzido e publicado no Brasil, lá em 2004, um livrinho chamado Nada é sagrado – tudo pode ser dito: reflexões sobre a liberdade de expressão, de Raoul Vaneigem, um livro que desmonta os lugares-comuns que povoam o debate sobre a liberdade de expressão, abala as certezas dos bem-pensantes e desarticula juízes e aprendizes de censor. Depois de ter selecionado, traduzido e publicado esse título na Parábola Editorial, tornou-se impossível me alinhar facilmente ao partido dos que defendem a posição esquizoide: “Liberdade só para mim e para os que pensam como eu”. De todo modo, se respeito a liberdade do comediante, não posso me furtar, seguindo o título do livro aqui mencionado, “tudo pode ser dito”, a pensar nas consequências desse humor fácil e rápido, calcado na disfarçada perversidade do senso comum mais rasteiro, preservando nosso [o dele e o meu] sagrado direito à liberdade de expressão.

 


O problema, minha gente, são as consequências desses sketches. À primeira vista engraçados e catárticos, eles, no fundo mais fundo de seu fundo, são cristalizadores de preconceitos contra os quais uns poucos lutamos a vida toda, sem a mesma audiência, sem a mesma força, mesmo quando se trata de meios só aparentemente democráticos como as redes sociais cada vez mais presentes na atualidade. Por sinal, essa facilidade de acesso deveria animar mais estudantes de Letras e professores a reagirem em vídeo e em blogs a essa onda cristalizadora de lugares-comuns que resistem tanto a ser vencidos. Vamos dizer o que sabemos, oferecer uma visão mais consequente com aquilo que nos inspiram os estudos linguísticos que se fazem no Brasil há mais de cinquenta anos.


Como o vídeo tem incidência direta sobre meu nada engraçado campo de atuação profissional [publicação no vasto campo das ciências da linguagem], o primeiro pensamento que me ocorreu foi: o humor nas redes sociais é o novo veículo do preconceito linguístico? Ultimamente são tantas as pequenas peças de humor disponíveis aos montes nas redes sociais que bebem fartamente na fonte do preconceito linguístico e arrastam sempre milhões de pessoas, que sou quase forçado a concordar com o vaticínio de Sírio Possenti em comunicação pessoal: com o avanço das lutas dos grupos sociais e dos militantes, teremos chances contra todos os preconceitos, menos contra o preconceito linguístico.


O pensamento de Sírio me fez logo pensar na presença forte e atuante do preconceito linguístico em todas as línguas. Até em pequenas comunidades de imigrantes em São Paulo, muitas vezes, quem fala uma variedade “rural” de sua língua materna não abre a boca a não ser em português para não ser considerado menos autóctone que os poucos autóctones provenientes de grandes centros que mantêm viva aquela língua de origem em nossa grande metrópole.


Luta fadada ao fracasso a nossa? Ainda não chego a essa conclusão paralisadora. Publicamos livros vários sobre o assunto, faz pouco passamos a produzir vídeos [bem menos vistos, comentados e compartilhados, é verdade!], memes e fotos em todas as redes sociais para falar às pessoas do conhecimento que as ciências linguísticas vêm construindo a respeito de por que se diz “pranta” e da desnecessidade de chamar quem diz que tem “pobrema” de “burra”, “inculta”, “incapaz”, “imprestável”, “inviável”. Seria preciso substituir todos esses rótulos facilitadores por explicações condensadas em palavrinhas de uso restrito, mas de teor libertador: “Assimilação, dissimilação, apócope, paragoge, metátese, epêntese, sândi, suarabácti, síncope, aférese, haplologia, analogia, reanálise, gramaticalização e por aí vai” (Marcos Bagno, https://www.brasiliarios.com/colunas/66-marcos-bagno/551-o-purista-e-um-personagem-tragico#.WOr6gh-SX9k.facebook, acesso: 25/04/2017). Enquanto esses conceitos científicos e suas consequências não se instalem como forças criativas de um humor não preconceituoso, esperemos ao menos que os humoristas das redes sociais nos façam rir com uma graça antecedida de maior consciência do teor político-cultural de sua presença nas telinhas e, se possível, de alguma leitura.


Até os dicionários informais colaborativos, facilmente acessíveis, dão algumas definições não lexicais e, por vezes, acabam repisando juízos de valor acerca de quem pronuncia “problema” como “pobrema”: “Sinônimo da palavra problema, normalmente falado por pessoas com baixo nível de instrução. Na verdade, quem tem um pobrema, tem dois” [http://www.dicionarioinformal.com.br/pobrema/, acesso: 25/04/2017].

 

A própria definição da palavra “em estado de dicionário” é, pasmem, uma piada. Ao lê-la, os mesmos milhões de pessoas que veem e aplaudem os comediantes que tomaram carona nessa vertente pejorativa, esboçarão leve riso de escárnio, se sentindo superiores [#sqn] aos “de baixo nível de instrução” que não saberiam falar a própria língua.

 

Espero muito que Sírio Possenti, que também esmiúça o tema do humor em suas pesquisas, não desista de nossa insurgência contra todos os tipos de preconceito, principalmente, naquilo que nos toca, o linguístico. Assim como espero que meu amigo que me acordou com a mensagem tipo soco no estômago logo cedo, não cumpra sua promessa: “A única coisa boa do vídeo é o sotaque! Amo! De onde será que eles são? Aff. Cansei. Vô m’imbora pra Grécia. Essa síndrome já me esgotou. Adeus, ã-mado. Foi bom Li conhecê”.

 

Thiago, você mal começa sua luta. É preciso dizer aos que tenham ouvidos de ouvir que nenhum preconceito se sustenta a um olhar mais arguto, para não dizer científico. E que, se não vencido, o preconceito linguístico será continuamente desmascarado por cada vez mais estudantes e professores de língua materna que, ao se aproximarem de seus alunos portadores das mais distintas variedades linguísticas, verão neles não gente “de baixa instrução”, mas falantes plenos de variedades carregadas de lógica e de sentido. Esses estudantes e professores de língua, então, farão seus alunos verem a riqueza ainda maior da língua que é a deles, demonstrando recursos, provando sentidos, propondo avanços e incremento da autonomia e força da expressão de si e do mundo, num concerto, jamais num autoritário conserto, cada vez maior de formas de dizer e de ser. Nessa dinâmica, cabem textos como unidades de sentido, múltiplos letramentos tradicionais e digitais, leitura e fala, um mundo de possibilidades permeadas de muita gramática, nunca de nomenclatura gramatical por si só.
"com o avanço das lutas dos grupos sociais e dos militantes, teremos chances contra todos os preconceitos, menos contra o preconceito linguístico"



E livros que vamos publicar.

E vídeos que vamos fazer para dizer às pessoas: alteiem  seu olhar acima e além do preconceito, pensem nas implicações políticas de uma gargalhada, mero reflexo de atitudes e sentidos cristalizados que não fazem mais que diminuir e desvirtuar a complexidade que é cada pessoa que cruza nosso caminho. E se quiserem, em termos linguísticos, ir além do que o senso comum travestido de [falso] conhecimento lhes diz, se tiverem a coragem de se desinstalar de seu próprio limitado conforto, deem atenção ao que os pesquisadores em língua e linguagens têm a lhes dizer. Sua liberdade de tudo poder dizer não será ameaçada. Ao contrário, será ampliada. Vocês tudo poderão dizer, nada lhes será proibido expressar, mas sem cair no truísmo bobo e raso de que as variedades populares não são língua, porque são! E língua plena.

Sírio, Thiago, vamos em frente. O tempo é curto, o trabalho pode parecer ingente, mas tamo junto.

Abraço,

m.

 

 

Língua portuguesa e estrangeirismos
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