Capturar2 A palavra mágica aqui é

Marcos Bagno

Há pouco tempo vi uma postagem numa rede social em que um anjo perguntava a Deus se era possível castigar os seres humanos “sem causá-los muito mal”. Onde se esperaria um “lhes” (mas quem é esse “se” que esperaria?), causar-lhes, aparece um “los”, causá-los. A gente vê coisa semelhante quando as pessoas dizem e escrevem agradecê-lo pelo convite ou isso o permite fazer tal coisa. Para quem estuda a mudança linguística esse fenômeno é um prato cheio.

Uma coisa que diferencia radicalmente o português brasileiro do português europeu e, de resto, de todas as outras línguas românicas é o tratamento que damos aos chamados pronomes pessoais. Em tempo: quando nós linguistas empregamos o nome de uma língua sem outra especificação, como acabei de fazer, estamos nos referindo à língua falada habitualmente, em seus empregos mais espontâneos, menos monitorados (isto é, sem que a pessoa preste excessiva atenção ao que está dizendo e principalmente a como está falando). Na sociolinguística variacionista, essa variedade falada recebe o nome de vernáculo e é a menina dos olhos da pesquisa sobre mudança linguística. Por quê? Porque é na fala habitual, não monitorada, que nós, falantes, deixamos vir à tona tranquilamente as formas inovadoras, que representam estágios diferenciados da mudança.

O que faz surgir essas forças inovadoras? Uma série de fatores que não posso explicar aqui (mas, para quem se interessar, vêm explicados no meu livro Língua, linguagem, linguística: pondo os pingos nos ii, Parábola, 2014). O que interessa é saber que os processos de mudança ocorrem nesse vernáculo, nessa fala não monitorada. Foi falando sem parar que as pessoas, nas diferentes áreas do antigo império romano, remodelaram o latim, até ele ficar tão diferente em cada região que passou a receber outros nomes. Um latim, aliás, que era essencialmente falado e, portanto, muito diferente desse modelo de língua esculpido em mármore que é o que se ensinava antigamente nas escolas e ainda se ensina nas universidades. Um latim chamado vulgar que, como o próprio nome indica, era falado por pessoas comuns e não por poetas e oradores. Também, como toda língua humana, apresentava enorme variação de um lugar para o outro, de uma classe social para outra etc. Desse modo, é divertido ver que tanta gente que “defende o português” da “ruína” e da “corrupção”, que quer conservar a língua na sua “pureza”, não sabe (ou quando sabe, finge que esqueceu) que o português é a evolução de uma língua vulgar, repleta de “erros”, falada por gente simples, iletrada e que, em muitíssimos casos e nas primeiras gerações, falava o latim como segunda língua. Enquanto em latim “clássico” se dizia domus, equus, os, em latim “vulgar” se dizia casa, caballus, bucca, de onde provêm, obviamente, casa, cavalo e boca. Mas vamos voltar ao lhe.

 

o português é a evolução de uma língua vulgar, repleta de “erros”, falada por gente simples, iletrada

 

Alguns aspectos dessa diferenciação radical do uso dos pronomes em português brasileiro são, entre muitos:

(a) o uso de ele(s)/ela(s) como objeto direto (“adoro elas!”);

(b) o desaparecimento dos pronomes o(s)/a(s), substituídos justamente por ele(s)/ela(s) ou, quase sempre por nada (“comprei esse livro mas ainda não [] li”);

(c) o uso dos pronomes retos em construções do tipo “deixa eu ver”, “manda ele entrar” (e não “deixa-me ver” e “mande-o entrar”);

(d) o uso, em determinadas variedades, de todos os pronomes retos em função oblíqua (“você tá mangando de eu”; “eu vi tu ontem na rua”; “ela disse que adora nós”…);

(e) e, por fim, o emprego de lhe única e exclusivamente com referência a você/tu e não a ele/ela — quanto à forma plural lhes, ela nunca-jamais ocorre espontaneamente no português brasileiro falado.

É praticamente total a ausência de lhe em muitas variedades do português brasileiro (muito dificilmente, por exemplo, a gente ouve lhe na fala paulista ou mineira) e, naquelas onde se usa lhe, a referência é sempre a você/tu: se alguém nos disser “Você viu o Pedro? Preciso lhe devolver um livro”, vamos achar no mínimo estranho (por que você pergunta pelo Pedro se quer devolver um livro para mim?). Além disso (porque nossos processamentos cognitivos da língua são extremamente complexos), o lhe nessas variedades pode ser ao mesmo tempo objeto indireto (“Quero lhe contar uma fofoca das boas”), como prescreve a tradição gramatical normativa, e objeto direto (“Eu achei que ia lhe ver ontem na festa”), uso censurado por essa mesma tradição.

 

nossos processamentos cognitivos da língua são extremamente complexos

 

Dito tudo isso, como explicar ocorrências do tipo causá-los, agradecê-la, o permite em lugar de causar-lhes, agradecer-lhe, lhe permite? Aqui entra em jogo um fenômeno de natureza social chamado hipercorreção, que é quando a pessoa, por insegurança linguística, acaba fazendo uso de uma forma que nem é a espontânea, habitual, nem aquela prevista pela tradição normativa. Um bom exemplo é o verbo haver. Na grande maioria das vezes, usamos ter com sentido “existencial” (“Tinha uma pedra no meio do caminho”, escreveu Carlos Drummond de Andrade há cem anos!), mas esse uso sofre o patrulhamento de quem se acredita mais realista do que o rei. Tendo ouvido dizer que usar ter nesses casos é um “erro”, e sem ter pleno domínio das regras normatizadas de uso de haver, a pessoa acaba dizendo/escrevendo coisas como “houveram problemas de conexão na laive de ontem”, que não é nem o uso normal (“teve problemas de conexão”) nem o previsto pela tradição normativa (“houve problemas de conexão”). Outra forma comum também é “tiveram problemas de conexão”, em que se faz uma concordância hipercorreta, na tentativa de conciliar o uso habitual do ter com o entendimento pouco claro das regras normatizadas de concordância.

A hipercorreção está presente em causá-los e agradecê-los porque a pessoa sabe que é preciso usar algum pronome, mas não exatamente qual. Uma vez que os pronomes o(s)/a(s) não pertencem ao nosso vernáculo e o lhe é sentido sempre como referente a você/tu, então o certo deve ser o(s)/a(s) porque, embora não usados na fala habitual, se referem sempre à 3ª pessoa: causar um mal a elescausá-los um mal. E assim como lhe pode ser objeto direto e indireto, também o(s)/a(s) são interpretados como objeto direto e indireto, de modo que lhe e o(s)/a(s) se tornam perfeitamente intercambiáveis, isto é, podem ser usados uns no lugar dos outros sem problema. Um desdobramento interessante é que uma forma como agradecê-la é empregada na interlocução: “Gostaria de agradecê-lo por ter aceitado nosso convite”, ou seja, “Gostaria de agradecer ao senhor por ter aceitado nosso convite”. Já que você(s) e o senhor/a senhora, apesar de semanticamente de 2ª pessoa, têm morfologia de 3ª (a forma do verbo é idêntica: “você sabe”, “a senhora sabe”, “ela sabe”), emprega-se para essas 2ªs pessoas os mesmos pronomes oblíquos empregados para as 3as (o que, de resto, corresponde à prescrição normativa). Mais uma hipercorreção: como lhe é usado para se referir a você/tu, tratamentos íntimos, então se imagina ser mais adequado usar o(a)/a(s) em contextos formais, quando se está falando com alguém que merece deferência (o senhor, a senhora). Além disso, agradecer também se emprega como transitivo direto (agradecer um favor; agradecer o convite), de modo que essa transitividade direta acaba sendo aplicada também aos objetos indiretos com traço semântico [+humano] (agradecer ao senhor → agradecê-lo).

Depois de toda essa análise, é natural se perguntar: e o que fazer no ensino? Respondo: a pessoa que vai ensinar deveria apresentar a regra tradicional (“lhe e lhes ocupam o lugar de objeto indireto, isto é, introduzido pelas preposições a/para”), mostrando, ao mesmo tempo, que essa regra já vem deixando de ser obedecida há muito tempo, não só na fala como também na escrita (e muitos dos textos destinados à leitura nos livros didáticos apresentam esses usos não-normativos), de modo que as alunas e os alunos aprendam a norma-padrão junto com o reconhecimento sereno de que a língua é variável e mutante. A palavra mágica aqui é também: ensinar a forma prescrita pela tradição normativa, mas também deixar claro que os demais usos – principalmente os consagrados na escrita monitorada – têm sua razão de ser (do contrário, teríamos de “corrigir” Machado de Assis, Drummond, Luís Fernando Veríssimo, Clarice Lispector e até mesmo o português Saramago).

Além disso, seria urgente e necessário que, depois de tanto conhecimento acumulado no último meio século sobre o que é realmente o português brasileiro contemporâneo, conseguíssemos sistematizar uma nova norma-padrão de referência para o ensino e outros usos sociais, uma norma que revelasse para toda a sociedade a verdadeira gramática da nossa língua, que conferisse um selo de qualidade a tantas e tantas mudanças ocorridas há quase duzentos anos e que continuam sendo alvo da repressão irracional de quem se vale do conhecimento de um padrão esclerosado como um saber esotérico capaz de separar os que “sabem gramática” de todo o resto da população que “não sabe português”!

 

A palavra mágica aqui é também: ensinar a forma prescrita pela tradição normativa, mas também deixar claro que os demais usos – principalmente os consagrados na escrita monitorada – têm sua razão de ser

 

Se escrevi acima que a pessoa que vai ensinar deveria proceder assim é porque sei que um ensino nesses moldes é uma utopia num país com um dos piores sistemas educacionais do mundo, em que a profissão docente é exercida sob condições desumanas (principalmente agora, com um desgoverno genocida censurando e perseguindo as professoras e os professores que não seguem seu ideário fascista e obscurantista), em que a imensa maioria da população (incluindo muita gente branca de classe média que se acha da elite) é analfabeta funcional. Uma educação democrática só pode existir numa sociedade democrática, coisa que a brasileira nunca foi, não é e, pelo visto, vai demorar muito a ser, se ainda existir espécie humana em 2221.