Blog da Parábola Editorial

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Português brasileiro e gramáticas

Português brasileiro e gramáticas

 

Uma palavra sobre mudança linguística

 

É indiscutível que as línguas mudam com o tempo. E a gente não precisa ser linguista pra perceber isso. Basta prestar atenção no modo como falam as pessoas de gerações anteriores ou ler um texto escrito em outra época, como uma notícia de jornal de cem anos atrás, um romance de Machado de Assis, a Carta de Pero Vaz de Caminha ou outra qualquer. O contato com registros passados de fala e escrita faz com que saltem aos ouvidos e olhos da gente construções linguísticas não mais usuais, itens lexicais que se perderam com o tempo e convenções de escrita já suplantadas. Além disso, a fala de pessoas mais jovens, com suas gírias e aspectos sintáticos particulares, também estampa esse incontornável movimento de mudança das línguas.

 

Diante de evidências dificilmente questionáveis, os linguistas que se dedicam ao tema da mudança linguística não buscam prová-la, mas sim compreender seus mecanismos e possíveis motivações. Esses pesquisadores também costumam estar atentos ao julgamento negativo dessa mudança, que é feito pela sociedade em geral. Infelizmente, a avaliação de que a mudança na língua leva a sua ruína ainda se faz presente no discurso das pessoas que não possuem formação em Letras, ou seja, a imensa maioria dos brasileiros. É bem provável que você já tenha ouvido (e dito!) afirmações como “Os jovens de hoje não falam português corretamente”, “O português correto é o dos escritores do passado” ou outro lamento semelhante contra o tenebroso caos linguístico em que supostamente teríamos afundado. Ou seja, para o senso comum, embora a percepção da mudança linguística seja inegável, sua aceitação é difícil de ocorrer e sua valorização, um desatino.

 

as línguas não conseguem funcionar senão mudando 

 

A bem da verdade, as línguas não conseguem funcionar senão mudando, a despeito dessa ideologia linguística conservadora do senso comum, a qual inunda a escola, as gramáticas normativas, a grande mídia, as academias de língua mundo afora, o universo jurídico, entre outros agentes e instituições próprios da cultura escrita. Mas por que as línguas haveriam de ficar mudando? Em outros termos, talvez até mais apropriados: por quais razões os falantes mudam as línguas?

 

Pesquisas linguísticas de diferentes vertentes teóricas mostram que há uma série de fatores internos e externos atuando decisiva e ininterruptamente no processo de inovação das línguas, entre os quais se destacam a variação linguística e os processos interacionais e cognitivos implicados nos usos da língua em diferentes contextos. Assim, formas alternativas de se dizer a mesma coisa, inerentes à natureza de qualquer língua, tendem a se ajustar a contextos comunicativos particulares. Ousadia é tentar exemplificar rapidamente esses fatores, de dimensões tão heterogêneas quanto extraordinárias, mas o intento demanda.

 

Pense, por exemplo, em diferentes expressões que você poderia utilizar, com adequação contextual, para se referir à “2ª pessoa do discurso” numa interação em português. Além do tu e do vós prescritos pela tradição gramatical, também estão disponíveis formas como você, vocês, o senhor, os senhores, a senhora, as senhoras, a senhorita... Quem sabe vossa mercê, vassuncê, ocê...? Por certo, você selecionaria uma dessas formas em detrimento de outras por razões de toda ordem. Ademais, na vida das línguas, houve, há e haverá uma espécie de concorrência entre formas alternativas, que lutam entre si para ocupar o mesmo contexto nas bocas e mãos das pessoas. Quando uma delas consegue esse lugar cativo (a exemplo de você, vocês, o senhor, a senhora), pode vir a deixar sua adversária esquecida num livro antigo (como vossa mercê, vós, senhorita) ou em falas de comunidades linguísticas particulares (tu, ocê) ou mais isoladas (vassuncê). Com o tempo, as formas vencedoras vão ganhando outros espaços pragmático-discursivos e cumprindo certas funções que não raro lhe demandam novas roupagens. É o caso de , forma apocopada de você e já bastante popular em muitos centros urbanos. A tradição gramatical, entretanto, ignora todo esse cenário de mudança e diversidade, ao insistir em tu e vós na apresentação do paradigma pronominal do português – formas não preferidas na fala e na escrita dos brasileiros em geral.

 

Outro fator que ocasiona a mudança das línguas é o contato linguístico. No Brasil, muito contribuiu para a constituição do português brasileiro – língua falada (e escrita) pela grande maioria das pessoas que aqui vive – o frequente e intenso contato entre falantes do português e de outras línguas, como, por exemplo, de línguas africanas. É verdade que as línguas africanas em si não tiveram tanta penetração no Brasil, muito porque a distribuição de escravos pela Colônia procurava driblar uma concentração étnica, cultural e linguística. Para se comunicarem, os povos africanos tiveram de adotar, portanto, o português do colonizador. Todavia, traços fonéticos e morfossintáticos de línguas africanas outrora em curso no Brasil estão presentes no português brasileiro de hoje. Esse dado faz com que linguistas discutam se a relação entre os falares africanos e o português brasileiro seria ou não da ordem da crioulização: processo de construção de um novo sistema linguístico, resultante de uma ruptura tipológica com uma língua em geral europeia, em situações de colonização e/ou escravidão. Alguns sustentam que os falares crioulos de matriz africana foram episódicos no Brasil e não passaram de uma “simplificação” do português. Outros, que a ascensão social do mestiço e a transformação da norma-padrão lusitana no ideal linguístico brasileiro levaram ao quase total desaparecimento desses crioulos, que ainda hoje subsistiriam parcialmente nas zonas rurais do país.

 

O purismo linguístico marcou a educação dos brasileiros

 

Em suma, o que se entende hoje por português brasileiro – em termos fonéticos, morfossintáticos, lexicais, pragmáticos e discursivos – é produto de inúmeros e contínuos processos de mudança linguística provenientes de fatores linguísticos, sócio-históricos, sociointeracionais e sociocognitivos. Porém, a escola brasileira ignorou desde sempre tal acontecimento, mesmo encontrando no Brasil setecentista uma clientela marcada por profundas diferenças entre a oralidade vernacular e a escrita padrão – consequência de quase dois séculos e meio de ausências de políticas culturais e educacionais por parte de Portugal. O purismo linguístico marcou a educação dos brasileiros desde essa época até o nosso tempo, o que ajudou a cristalizar o imaginário de que não falamos nem escrevemos corretamente. O ensino de língua portuguesa no Brasil desprezou as mudanças linguísticas operadas aqui, se mantendo sempre como o ensino da gramática da norma-padrão clássica e lusitana da língua portuguesa.

Nessa tradição, o termo gramática costuma remeter a estruturas linguísticas que obedecem a prescrições fossilizadas em gramáticas prescritivas de referência, livros didáticos e gramáticas escolares. Esses instrumentos sustentam a ideologia da língua correta e imutável, não só por seu cunho normativo, mas também pela imprecisão ou indefinição do conceito de norma que os conduz. Confundem norma-padrão com norma culta ou registro formal, quando não a igualam à própria língua, apresentada de modo homogêneo, sem variação. Forjam um ideal de escrita (e fala!), fincando-se em modelos literários distantes no tempo e espaço.

 

Entretanto, há cerca de duas décadas, começaram a ser produzidos instrumentos de gramatização da língua efetivamente em uso no Brasil contemporâneo, a partir de diretrizes epistemológicas contra-hegemônicas e fundamentados em teorias e pesquisas linguísticas. Obras como a Gramatica dos usos do português, de Maria Helena de Moura Neves (2000), a Gramática do português brasileiro, de Mário Perini (2010), a Nova gramática do português brasileiro, de Ataliba de Castilho (2010), e a Gramática pedagógica do português brasileiro, de Marcos Bagno (2012), entre outras, tendem a reconhecer, valorizar e legitimar as mudanças, consolidadas e em curso, do português brasileiro. Costumo referenciá-las por meio da expressão gramáticas brasileiras contemporâneas do português, em oposição às gramáticas normativas tradicionais. b2ap3_thumbnail_Gramatica_pedagogica.jpg

 

A partir de usos linguísticos autênticos e contemporâneos, extraídos de contextos de escrita (e fala) para além dos cânones da literatura romântica e realista, essas novas gramáticas incorporam em seus movimentos descritivo-normativos várias formas e construções próprias dos brasileiros, porém historicamente marginalizadas ou mesmo vetadas pela tradição gramatical purista.

 

Os professores de português precisam considerar essas obras como instrumentos de referência de uma norma condizente com a identidade linguística brasileira, à guisa tanto de honestas orientações normativas para os alunos quanto de uma avaliação mais justa de seus textos orais e escritos. Além disso, o descarte do ensino de uma norma imutável e, por conseguinte, irreal otimiza o tempo pedagógico para trabalhar habilidades e conteúdos que realmente importam na formação de leitores e escritores proficientes. É urgente, portanto, entendermos os alcances dessas recentes gramáticas, de modo a nos permitir utilizá-las quer enquanto professores, quer enquanto falantes e escritores do português brasileiro

 

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LÍNGUA PORTUGUESA
Conversa com Antonio Candido

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