Por que [não] amamos o português brasileiro?

 

“O povo que chupa o caju, a manga, o cambucá e a jabuticaba, pode falar uma língua com igual pronúncia e o mesmo espírito do povo que sorve o figo, a pera, o damasco e a nêspera?"

[ALENCAR, José de. Sonhos d´Ouro. São Paulo: Melhoramentos, s.d. apud PINTO, Edith Pimentel. O português do Brasil. São Paulo: Edusp, 1978, p. 96]

 

A epígrafe acima revela um questionamento tão válido quanto o título deste artigo. Embora título e epígrafe soem contemporâneos, a segunda pergunta é de José de Alencar (1829-1877) e data de 1872. Mesmo assim, apesar de separados por mais de cento e quarenta anos, o título e a epígrafe demonstram uma “preocupação” com o português no Brasil existente antes mesmo do advento da linguística, tal como a concebemos.

 

Se, por um lado, notamos, já à época alencariana, uma tentativa de fazer valer a voz do português brasileiro, por outro, nos causa estranheza o fato de, em pleno século XXI, ainda seguirem em clara atividade os comandos paragramaticais a disseminarem antigas e empoeiradas gramatiquices relacionadas à “norma curta”. Isso sem levar em conta o fato de ainda não haver uma gramática brasileira a ser ensinada na escola, o que nos mostra a subsistência de um ensino normativo e normativista “inexoravelmente ligado” à língua lusitana.

 

“Preocupação” com o português no Brasil existia antes mesmo do advento da linguística, tal como a concebemos.

 

Essa aparente contradição não é nova e tampouco se instaurou de modo inexplicável. Historicamente, a quizumba nasce no mesmo momento em que despontam reflexões sobre as diferenças entre o português brasileiro e o lusitano, no primeiro quartel do século XIX, ou seja, antes mesmo do romantismo. Já a essa altura, em 1824-1825, Domingos Borges de Barros (1780-1855), Visconde de Pedra Branca, declarava ser o idioma brasileiro mais ameno e mais doce que a variedade portuguesa.

 

Apesar da aparente “consciência” das diferenças entre o português brasileiro e o europeu, é somente em 1850, com Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), Visconde de Porto Seguro, que a língua passa a ter seus contornos mais problematizados. Imbuído de um sentimento romântico, o que denotava uma atitude marcadamente nacionalista, o Visconde de Porto Seguro propunha a teoria de um acastelhanamento do português brasileiro, numa tentativa de romper com o jugo português, tendo em vista a recente independência do país.

 

Essa aparente contradição, no entanto, não é nova e tampouco se instaurou de modo inexplicável. 

 

Voltando à contradição, nos concentraremos em Alencar, cuja figura é tão idealizada quanto a do próprio romantismo de que ele tomou parte, principalmente no que se refere à sua contribuição para a defesa da variedade brasileira do português. Ele é o perfeito expoente das contradições com as quais aqui lidamos: tomada a epígrafe como o único dito do autor acerca do tema, tem-se a impressão de um herói romântico no quesito “salvaguarda” de nossa língua.

 

Edith Pimentel Pinto, em 1978, demonstrava a importância do escritor romântico, principalmente no que tange à proposta de um “cisma gramatical” (até hoje, diga-se de passagem, não ocorrido). No entanto, a autora traz à baila também as inúmeras vezes em que o criador de Iracema se valeu da gramática normativa para justificar certos usos seus considerados “errados” por seus críticos.

 

José de Alencar é o perfeito expoente das contradições com as quais aqui lidamos.

Ainda sobre ele, é preciso considerar dois outros aspectos: ao mesmo tempo em que defendia o direito do uso popular, manifestava-se veementemente contra os neologismos advindos desse uso. Em sua visão, somente os de criação literária eram aceitáveis. Aliás, é importante lembrar que boa parte das contendas do século XIX girava em torno da aceitação ou não dos neologismos, sempre tomando por base a linguagem literária.

 

Ilustrada a querela, é hora de voltar à primeira pergunta, lançada no título: “Por que (não) amamos o português brasileiro?” Haveria alguma explicação para todo esse (des)amor? Para tentar responder, ou ao menos suscitar alguma reflexão, devemos voltar nosso olhar, uma vez mais, ao século XIX, em que muito se perguntou, ainda que sem os métodos necessários para o encontro das respostas devidas.

 

“Por que (não) amamos o português brasileiro?” Haveria alguma explicação para todo esse (des)amor?

 

Retornamos, então, outra vez ao romantismo, período popularmente vinculado ao amor idealizado, o qual se refletiu nas discussões linguísticas que hoje nos alcançam. Falaremos do sentimento de estima, afeição, consideração e devoção que (in)existiu desde essa época em nosso país, uma vez defrontada a inocultável face da língua brasileira. Todavia, é necessário situar, mais uma vez historicamente, a configuração social da época.

 

O Brasil passou por diversas transformações, iniciadas pela transladação da corte para o Rio de Janeiro e culminadas não só com a Independência, mas também com a abolição dos escravos, em 1888. Todos esses fatores contribuíram decisivamente para a configuração de um espírito questionador, transgressor e, sobretudo, nacionalista – responsável pelo “antilusismo” aqui imperante, sobretudo após a ruptura dos vínculos com a metrópole.

 

Éramos uma civilização mais pujante que a portuguesa e, por isso, teríamos uma língua mais rica, ou então, mantínhamos características arcaizantes do idioma.

 

E assim assistimos ao despertar de teorias de superioridade da língua do Brasil em relação à de Portugal, motivadas muito mais por arroubos apaixonados que por investigação propriamente científica. Tais teorias bem revelam a presença de um sentimentalismo a toda e qualquer prova: éramos uma civilização mais pujante que a portuguesa e, por isso, teríamos uma língua mais rica, ou então, mantínhamos características arcaizantes em nosso idioma, o que nos remetia ao século XVI, época áurea da língua em terras lusitanas.

 

Talvez estejamos cometendo um erro ao aproximar a palavra amor, tão distante do universo científico, da discussão sobre o português brasileiro. Talvez pequemos pela confusão entre amor e paixão, posto que esta se encaixa muito melhor no espírito romântico. Entretanto, nutriu-se inegavelmente, nalgum momento, um sentimento amoroso latente pela língua aqui transplantada – àquela altura, havia quatro séculos, ainda que de modo não absoluto, como queiram alguns. E talvez isso seja também um erro: encarar “romanticamente” a aparente defesa da variedade brasileira.

 

Talvez isso seja também um erro: encarar “romanticamente” a aparente defesa da variedade brasileira.

 

É válido ponderar que houve inúmeros defensores de um amor que enaltecia a prática do “purismo” como maneira de reafirmar, uma vez mais, a já falada “superioridade” da língua. Tínhamos, então, um vernáculo mais puro e menos aberto a mudanças, pois aqui “se cultivavam os mais belos ideais de idioma”, o que, de acordo com eles, não acontecia com os portugueses. A “cousa amada”, para valer a fala de Camões, aqui se mostra aprisionada, numa tentativa de proteção que lhe seria indelevelmente mais danosa que profícua.

 

E aqui podemos enxergar mais claramente que o ideal de português brasileiro imperante era, sem dúvida, bem diferente daquele que concebemos hoje. Valha a história para trazer novamente à tona o caráter elitista da educação da época: grande parte dos intelectuais advinha das classes mais abastadas, salvo raras exceções. Se tem, então, um ideal de língua que, ainda com contornos aparentemente independentes, via-se aprisionado a um passado, como que sob efeito da febre evasiva do homem romântico, aquele que buscava se reencontrar com suas origens.

 

Tínhamos, então, um vernáculo mais puro e menos aberto a mudanças, pois aqui “se cultivavam os mais belos ideais de idioma”.

 

Isso explica, por exemplo, a prevalência de uma gramática lusitana em uma época em que se configurava um ideal de educação nacional, sobretudo com a inauguração da cátedra de língua portuguesa – em substituição à de retórica nacional – do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Assim, em vez de se ter uma preocupação com a língua realmente utilizada pelos falantes (entenda-se aqui, sobretudo, a falada), houve uma subjugação dessa língua a um lusismo que, há muito, já não se praticava.

 

 

Se ama, então, um português convenientemente brasileiro, mas tão somenteno que se refere a questões lexicais, sem reconhecer a língua de uma imensa maioria que a utiliza. Da mesma forma, se prioriza uma norma, chamada sabiamente por Faraco de “curta”, ainda imperante entre nós. Como exemplo, podemos citar a colocação pronominal, que o próprio Said Ali, no início do século XX, dava como elucidada em suas Dificuldades da língua portuguesa (Rio de Janeiro: Laemmert Livreiros, 1908), mas nunca resolvida no momento propício.

 

Foi silenciada a voz dos povos indígenas e africanos, cuja contribuição é fundamental para a configuração do nosso português.

 

Tal procedimento, visivelmente elitista, era tentativa de silenciar a voz dos povos indígenas e africanos, cuja contribuição é fundamental para a configuração do nosso português – embora houvesse quem a negasse, ainda no século XX. Isso se deu num momento em que se planejava a construção de um país independente, mas, ao mesmo tempo, de ares europeus. Em suma, centralizado em uma pretensa superioridade branca, inclusive no quesito linguístico.

 

Convém, apesar de tudo, ressaltar que nem todos os pensadores da época retratada mantiveram esse pensamento purista ou discriminatório. Muitos oscilaram entre a tentativa de explicar a língua falada, sem conseguir se livrar do peso da gramática normativa, ora vista como ideal e objetivo, ora como carente de reformulação ao “gosto” brasileiro, mas sempre considerando a fala dos letrados, obviamente distante da popular.

 

O português brasileiro não foi e nem é um conceito unânime.

 

Retornando ao século XXI, em que lançamos a pergunta pelo amor a nossa língua, percebemos que a contradição permite o uso de um possível advérbio de negação, como o fizemos no título de nosso texto. Isso porque a história dá conta não só do questionamento da (in)existência desse amor, mas também do alvo de tal sentimento: afinal, o português brasileiro não foi e nem é um conceito unânime.

 

Feitas as ressalvas e dada a subjetividade do sentimento, confessamos não ter uma resposta definitiva para a questão aqui levantada. No entanto, é possível que a ausência de um veredito não figure como ineficácia textual ou falta de método na obtenção da resposta. Oxalá seja essa imprecisão a única exegese possível do fato de (não) amarmos o português brasileiro: nem todos os amores se assumem facilmente.


 

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