POLÍTICAS LINGUÍSTICAS

 

DO QUE TRATAM elas?

 

Muita gente que ouve a expressão “políticas linguísticas” pela primeira vez pensa em algo solene, formal, oficial, em leis e portarias, em autoridades oficiais, e pode ficar se perguntando o que seriam leis sobre línguas. De fato, há leis sobre línguas, mas as políticas linguísticas também podem ser menos formais – e nem passar por leis propriamente ditas. Em quase todos os casos, figuram no cotidiano, pois envolvem não só a gestão da linguagem, mas também as práticas de linguagem e as crenças e valores que circulam a respeito delas.

 

O que seriam leis sobre línguas?

 

Tome, por exemplo, a situação do cidadão das classes confortáveis brasileiras, que quer que a escola ensine a norma culta da língua portuguesa. Ele folga em saber que o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) vai exigir isso dos candidatos às vagas para o ensino superior, mas nem sempre observa ou exige o mesmo padrão culto, por exemplo, na ata de condomínio, que ele aprova como está, desapegada da ortografia e das regras de concordância verbais e nominais preconizadas pela gramática normativa. Ele acha ótimo que a escola dos filhos faça baterias de exercícios para fixar as novas normas ortográficas no final do Ensino Médio, mas pouco se incomoda com os problemas de redação dos enunciados das tarefas dirigidas às crianças no início do Ensino Fundamental ou nos textos de comunicação da escola dirigidos à comunidade escolar. Essas são políticas linguísticas, assim como também é política linguística o silêncio do ENEM a respeito do que é ou deixa de ser a norma culta.

 

O silêncio também é política

 

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Onde há gente, há grupos de pessoas que falam línguas. Em cada um desses grupos, há decisões, tácitas ou explícitas, sobre como proceder, sobre o que é aceitável ou não, e por aí afora. Vamos chamar essas escolhas – assim como as discussões que levam até elas e as ações que delas resultam – de políticas. Esses grupos, pequenos ou grandes, de pessoas tratam com outros grupos, que por sua vez usam línguas e têm as suas políticas internas. Vivendo imersos em linguagem e tendo constantemente que lidar com outros indivíduos e outros grupos mediante o uso da linguagem, não surpreende que os recursos de linguagem lá pelas tantas se tornem, eles próprios, tema de política e objetos de políticas explícitas. Como esses recursos podem ou devem se apresentar? Que funções eles podem ou devem ter? Quem pode ou deve ter acesso a eles?

 

Muito do que fazemos diz respeito às políticas linguísticas. Numa formulação sintética e completa, Cooper (1989) definiu políticas linguísticas, ou “planejamento da linguagem”, como os “esforços deliberados para influenciar o comportamento de outros no que concerne à aquisição, estrutura ou alocação funcional de seus códigos linguísticos” (apud Carvalho e Schlatter, 2011: 262). Esses esforços deliberados para influenciar o comportamento de outros no que concerne a usos da linguagem podem se dar mediante leis e portarias, mas podem ser vistos também de modos mais sutis nas famílias, nos grupos de amigos, em locais de trabalho, em empresas e, por certo, em escolas. É possível pensar e enumerar diversas situações em que isso fica evidente, das mais cotidianas às mais formais. Algumas delas exemplificadas a partir dos enunciados a seguir, nas falas cotidianas que poderiam acontecer em diversos contextos, como:

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• “Aqui em casa não se fala assim!”

• “Fala português, que aqui é o Brasil!”

• “Mim é fraquinho, não pode ser sujeito de frase”.

 

Por sua vez, as instâncias oficiais exercem seus poderes muitas vezes mediante regulação linguística explícita. O Estado, com efeito, é talvez o mais destacado agente de políticas linguísticas. Ainda assim, é importante lembrar que o Estado se move pelos atos de pessoas de carne e osso. Nessa ótica, portanto, as políticas linguísticas oficiais são também resultados das ações de gente que usa a linguagem e que disputa recursos com outros indivíduos e grupos. Políticas linguísticas implícitas, portanto, andam juntas com políticas explícitas.

 

Política é disputa

 

Nesse quesito, as políticas linguísticas não diferem das políticas públicas em geral, que podem ser caracterizadas como “descontínuas, contraditórias, caóticas, incompletas, descoordenadas”, de modo tal que “o que mais comumente encontramos são adesões imperfeitas às políticas, mais do que não adesões” (Farenzena, Rossi, Machado, Del Pino e Batista, 2012: 162). E isso não se restringe ao Brasil. Como atestam análises de políticas educacionais na obra de Ball (2008), por exemplo, que tem o Reino Unido como cenário:

 

A maior parte das políticas são casos de acomodações precárias sem planejamento, que são retrabalhadas, emendadas e recebem nuanças e inflexões mediante processos complexos de influência, produção textual, disseminação e por fim recriação nos diversos contextos de prática (Ball, 2008: 30),

  

de modo que “as políticas na prática estão sujeitas a recontextualização e reinterpretação, e diferentes políticas podem estar em contradição quando ‘reunidas’ na prática” (p. 194-195). Isso deve nos alertar para a necessidade de compreensão do que se passa no quadro mais amplo dos discursos que sustentam as políticas, e também para as possibilidades de participação ativa na configuração das políticas que nos tocam.

 

No período inicial dos estudos de políticas linguísticas, acreditou-se que os conhecimentos técnicos dos estudos acadêmicos da linguagem seriam capazes de identificar as causas e resolver problemas ligados à linguagem de modo racional e linear. Isso dizia respeito em especial às necessidades de funcionamento dos Estados nacionais modernos, conforme se desenvolveram desde o século XIX (Hobsbawm, 1990), cada vez mais preocupados com a gestão das inúmeras situações de diversidade linguística nas suas jurisdições. Os estudos de políticas linguísticas tomaram corpo mais adiante, à época em que a Linguística prometia um admirável mundo novo e os movimentos de independência nas regiões antes ocupadas pelos estados coloniais dos imperialismos europeus exigiam decisões, por exemplo, quanto às línguas a serem usadas por esses novos Estados para a burocracia, e aí centralmente a educação, responsável por moldar o bom cidadão nacional. Escolhas como as que fizeram Quênia e Indonésia, pela adoção de suaíli e bahasa, respectivamente, línguas oriundas da própria região, exigiam esforços para dotá-las de formas padronizadas para a escrita e de um vocabulário que desse conta do tratamento de ciências e tecnologias. Escolhas como as que fizeram a maior parte dos países africanos em favor da(s) língua(s) do Estado colonizador, como foi o caso dos hoje países africanos de língua oficial portuguesa (PALOP), exigiam esforços, entre outros, para acomodação das línguas crioulas e das línguas dos tantos grupos étnico-linguísticos no território do novo Estado.

 

Políticas linguísticas são políticas

 

Inúmeras outras situações poderiam ser apontadas nesse período em que se desenvolveu a crença de que análises técnicas resultariam em planejamento e planificação linguísticas eficazes. A realidade se mostrou mais complexa, entre outras razões em função do fato, hoje reconhecido, de que são muitas as dinâmicas por que passam as políticas públicas. Entre concepção, formulação e implementação, são diversos os caminhos e os atores envolvidos, de modo que muitas vezes elas surgem com um propósito elaborado por um grupo de atores e, lá pelas tantas, outros grupos se valem delas para outros fins que lhes são próprios. As políticas linguísticas não são exceção.

 

REFERÊNCIAS

BALL, S. The Education Debate. Bristol: The Policy Press, 2008.

CALVET, L.-J. As políticas linguísticas. São Paulo: Parábola; Florianópolis: IPOL, 2007.

CARVALHO, S. C.; SCHLATTER, M. Ações de difusão internacional da língua portuguesa. Cadernos do IL, v. 42, 2011.

COOPER, Robert L. Language Planning and Social Change. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.

FARENZENA, N.; ROSSI, A. J.; MACHADO, M. G. F.; DEL PINO, M. A. B.; BATISTA, N. C. Implementação de planos de ações articuladas municipais: pontuando achados relevantes. In: FARENZENA, N. (org.). Implementação de planos de ações articuladas municipais: uma avaliação de quatro estados brasileiros. Pelotas: Ed. Gráf. Universitária/UFPel, 2012.

HOBSBAWM, E. Nations and Nationalism since 1780. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.

MOITA LOPES, L. P. (org.). Português no século XXI: ideologias linguísticas. São Paulo: Parábola, 2013.

SPOLSKY, B. Para uma teoria de políticas linguísticas. ReVEL, vol. 14, n. 26, 2016. Trad.: P. Petry. Revisão técnica: P. M. Garcez [www.revel.inf.br].

WOOLARD, K. (1998). Language Ideologies: Practice and Theory. Nova York: Oxford University Press, 1998.

 

* A íntegra deste artigo está publicada em GARCEZ, Pedro de Moraes; SCHULZ, Lia. ReVEL na Escola: do que tratam as políticas linguísticas. ReVEL, v. 14, n. 26, 2016. [www.revel.inf.br].