POLÍTICAS LINGUÍSTICAS E ESCOLA

 

Políticas linguísticas

 

Se uma das possibilidades de definir políticas linguísticas diz respeito a tomadas de decisões sobre a língua, sobre seus usos e usuários, a escola como instituição dificilmente escapa delas. Pelo contrário, as chamadas políticas linguísticas de aquisição afetam diretamente o que se faz na escola e como se faz, pois é nas instituições educacionais escolares que a maior parte delas se efetiva. Tanto em linhas gerais (cf. Spolsky, 2016a), quanto em casos específicos (cf. Sarmento, 2016), as políticas linguísticas educacionais figuram em destaque. Além das discussões escolares que envolvem a legislação educacional vigente e os documentos prescritivos elaborados pelas instâncias governamentais, há casos que repercutem em diferentes esferas e mobilizam um conjunto de atores sociais, nem todos com a mesma força. Exemplos disso são a adoção e a implementação do Acordo Ortográfico, ou a gestão do Programa Nacional do Livro Didático (Sarmento, 2016). Em ambos os casos, tanto os processos quanto os produtos finais tocam diretamente a educação escolar, e não apenas o ensino de língua portuguesa ou de línguas adicionais, mas de resto todos os componentes curriculares e o próprio funcionamento da escola. Em ambos os casos, muito se discutiu nos meios de comunicação e entre especialistas. Os professores, no entanto, nem sempre são escutados. Embora sejam agentes da implementação, nem sempre é ocupado o pouco espaço de discussão que lhes é oferecido, ou que é por eles conquistado. A preocupação de muitos em como ensinar as alterações ortográficas que vieram com o Acordo é por diversas vezes respondida pela publicação de manuais ou encartes editoriais que resumem o conjunto de novas regras, sem dimensionar essas informações nas práticas de linguagem, nem na pauta mais ampla das reponsabilidades formativas dos educadores da linguagem. A escola parece ter ficado com mais uma tarefa difícil, entre as tantas diversas que já enfrenta, sobre a qual quase não desenvolve agentividade.

 

Os professores, no entanto, nem sempre são escutados

 

Outros episódios marcantes envolvendo políticas linguísticas diretamente ligadas à educação escolar nos últimos anos no Brasil são também dignos de nota. Um deles se deu em torno do Projeto de Lei da Câmara dos Deputados Federais que propunha a proibição de estrangeirismos no Brasil (cf. Faraco, 2004; Garcez, 2004). Embora a proposta tenha sido feita ainda nos anos 1990, a discussão intensa daquela proposta e de outras semelhantes se estendeu até recentemente. Em meados de 2011, mais uma lei estadual antiestrangeirismos foi proposta à Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, aprovada e submetida à decisão de sanção ou veto do então governador, Tarso Genro, que chamou à oitiva um grupo de cidadãos. Em 11 de maio de 2011, Ana Zilles e Pedro Garcez fizeram pronunciamentos dirigidos ao governador Tarso Genro e secretários de estado em evento solene do Projeto “O Governo Escuta” no Palácio Piratini. O veto parcial do governador contemplou, para todos os fins práticos, as recomendações. Em seguimento, os professores enviaram carta aberta ao governador, “Políticas linguísticas para o nosso estado”, que protocolaram na Casa Civil do Estado do Rio Grande do Sul em 18 de maio de 2011.

 

as metas de “proscrição” não foram alcançadas

 

Em 2011, contudo, tivemos talvez o mais estrondoso episódio midiático a repercutir os dilemas das políticas linguísticas educacionais brasileiras no que diz respeito aos fenômenos de variação linguística na concordância nominal e verbal do português (cf. Garcez, 2013: 85-89). Isso se deu por conta da distribuição da série didática “Por uma vida melhor”, destinada à Educação de Jovens e Adultos, no PNLD. Nas duas situações, tivemos uma forte reação de diversos linguistas, com a produção de artigos, cartas abertas, livros e documentos que ampliavam a discussão (cf. dossiê em Ação Educativa, 2011). No episódio do livro de EJA, algumas avenidas de interlocução se abriram não apenas entre as esferas acadêmica e midiática, mas também entre essas e a escola.

 

o combate ao internetês

 

Quer no caso dos projetos de leis antiestrangeirismos, que no dos protestos pela rejeição do reconhecimento de formas linguísticas características do português brasileiro, as metas de “proscrição” não foram alcançadas. Isso se deu em larga medida pela manifestação de oposição em espaços para que se falasse de usos e proibições, de valores associados às línguas, de repressão e de controle. Outras frentes dessa natureza podem ser encontradas em diversas instâncias na escola hoje. Uma delas se dá quanto aos usos da linguagem em textos informais na internet. O antigo medo de que a língua portuguesa se encontrasse ameaçada pela adoção de palavras estrangeiras, de alguns anos para cá tomou um novo alvo: o combate ao internetês. Passados alguns anos de convivência com os espaços na rede e com a escrita no mundo digital, tal receio diminui, sem, no entanto, deixar de chamar atenção para a recorrência de ações de contenção da diversidade. É importante notar a importância de trabalhos produzidos igualmente para desconstruir a ideia de língua ameaçada e reafirmar a natureza heterogênea da linguagem (cf. Bisognin, 2009; Xavier, 2013). Vários professores hoje já se acostumaram com a ideia de diferenciar a escrita na rede da escrita escolar e do que se deve ensinar para as tantas outras instâncias de usos da linguagem. No entanto, ainda é bastante comum encontrar diversas normativas de cuidados e proibições – em documentos, livros e materiais didáticos – quando se trata, por exemplo, de ensino de redação, seja para vestibular ou para o ENEM. São muitas vezes instruções explícitas de como evitar o uso de qualquer termo visto como evidência de internetês.

 

a escrita na rede da escrita escolar

 

A situação que envolveu a série didática “Por uma vida melhor(ver Ação Educativa, 2011) talvez seja das mais eloquentes ao trazer à tona pesados preconceitos acerca de usos corriqueiros da linguagem, associados a uma população muito distante do acesso à escrita. Além disso, o discurso midiático que lançou a polêmica revelou explicitamente uma série de enunciados sobre o que se deve ou não ensinar na escola. Os casos de concordância foram amplamente repercutidos e, ao que parece, dessa vez, muitos professores puderam participar da discussão, grande parte defendendo a publicação que, pela primeira vez na história, tinha sido elaborada especificamente para a modalidade de ensino para jovens e adultos. Eventos e debates foram realizados, tanto na esfera acadêmica como midiática. A decisão de manter a obra parecia bastante evidente quando os atores dos debates revelavam a leitura completa do livro ou do capítulo mencionado, cujo foco era a diferença entre fala e escrita. Passados alguns anos, muitos ainda lembram a chamada “polêmica do livro didático do MEC”, embora a pauta sobre uso de concordância na fala e na escrita (ou o que a falta de concordância nos diz sobre os falantes e a função da escola) permaneça em aberto. É possível afirmar que evoluímos no debate acerca de decisões conjuntas, pelo menos. Isso é um ganho quando vivemos um momento de consulta pública para a elaboração de uma Base Nacional Comum Curricular, política educacional que envolve muitas decisões acerca de políticas linguísticas de aquisição e que terá, por certo, muitos caminhos a percorrer até a redação de texto final, sua aprovação e sua implementação como política pública.

 

políticas linguísticas estão bastante presentes na nossa vida cotidiana

  

A escola pode ter um papel importante e pró-ativo nesses processos. Espaços como a consulta acerca da Base Nacional Comum Curricular, por exemplo, revelam possibilidades para que os educadores possam participar e ter a sua voz levada em conta na elaboração de políticas linguísticas.   Muitas outras possibilidades podem ser conquistadas, começando pela discussão sistemática de questões que importam para as comunidades escolares no próprio trabalho do dia a dia de ensinar e aprender na escola.

  

REFERÊNCIAS

AÇÃO EDUCATIVA. Por uma vida melhor: intelectuais pesquisadores e educadores falam sobre o livro. São Paulo: Ação Educativa, 2011 (disponível em http://www.bibliotecadigital.abong.org.br/handle/11465/1631, acesso: 06Set2017)

BISOGNIN, Tadeu Rossato. Sem Medo do Internetês. Porto Alegre: Age Editora, 2009.

FARACO, Carlos Alberto (Org.). Estrangeirismos: guerras em torno da língua (3a. ed., revista e ampliada). São Paulo: Parábola, 2004.

GARCEZ, Pedro de Moraes. A proposta de legislação anti-estrangeirismos no Congresso Nacional do Brasil (1999-2003). Revista Internacional de Linguística Iberoamericana, v. 2, n. 1, 2004. Republicado In: FARACO, Carlos Alberto (Org.). Estrangeirismos: guerras em torno da língua (3a. ed., revista e ampliada). São Paulo: Parábola, 2004.

GARCEZ, P. M. Observatório de políticas linguísticas no Brasil: metas para a Linguística Aplicada. In: NICOLAIDES, Christine; DA SILVA, Kléber Aparecido; TILIO, Rogério; ROCHA, Cláudia Hisldorf (Orgs.). Política e políticas linguísticas. Campinas, SP: Pontes, 2013.

SARMENTO, Simone. Programa Nacional do Livro Didático de Língua Estrangeira. ReVEL, v. 14, n. 26, 2016. [www.revel.inf.br].

SPOLSKY, Bernard. Políticas Linguísticas: uma entrevista com Bernard Spolsky. ReVEL, vol. 14, n. 26, 2016a. Tradução de Ana Carolina Spinelli e Gabriel de Ávila Othero [www.revel.inf.br].

XAVIER, Antônio Carlos dos Santos. A (in)sustentável leveza do internetês. Como lidar com essa realidade virtual na escola? In: ELIAS, Vanda Maria (Org.). Ensino de língua portuguesa: oralidade, escrita e leitura. São Paulo: Editora Contexto, 2013.

 

* A íntegra deste artigo está publicada em GARCEZ, Pedro de Moraes; SCHULZ, Lia. ReVEL na Escola: do que tratam as políticas linguísticas. ReVEL, v. 14, n. 26, 2016. [www.revel.inf.br].