Blog da Parábola Editorial

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O que eles buscam em nós

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Mensagem aos Professores no atípico ano pandêmico de 2020

Celso Ferrarezi

Em 1985, a direção da escola de educação básica em que eu trabalhava, ali naquela periferia de uma cidade amazônica, me lotou para substituir uma professora que tinha sido afastada por estar enfrentando problemas com o alcoolismo. Havia, ainda, o complicador de essa professora morar no bairro da escola e, algumas vezes, ser vista pelos alunos caída na sarjeta nos finais de semana ou indo alcoolizada trabalhar. Era uma 2ª série fundamental (naquele tempo, uma classe com alunos de 8 anos de idade).

Passados alguns dias na regência da sala, uma aluninha muito pequenininha chamada Amanda, na hora em que todos estavam copiando as tarefas da lousa, se levantou quietinha e veio se achegando até a minha mesa daquele jeito manhoso que só os gatos — e as crianças pequenas — desejosos de alguma coisa, conseguem ter, aquele jeito manhoso de quando se esfregam em nossas pernas. Ela primeiro se encostou em mim, depois me abraçou e, depois de alguns segundos, me disse:

— Ainda bem que agora a gente tem professor...

Olhei assustado para ela e respondi:

— Mas, vocês tinham uma professora antes!

— Não... ela não era professora... — cochichou bem baixinho, fazendo aquela carinha de “você não sabe de nada...”

— Não? E o que ela era?

Ela chegou mais pertinho e falou bem baixinho em meu ouvido:

— Ela era bêbada... Mas eu já perguntei para a diretora e ela disse que você não é bêbado, não.

— Ah! Entendi... —mentira! Eu estava mais confuso do que nunca...

Então, ela aproveitou que estava pertinho do meu rosto e perguntou ainda mais baixinho, quase sussurrando:

— Deixa eu te dizer mais uma coisa?

— Claro, Amanda. O que é?

Ela se achegou novamente e cochichou no meu ouvido:

— Meu pai também é bêbado... Minha mãe disse que a gente vai ter que ir embora para outra casa, porque meu pai não é pai de verdade... Eu disse pra ela que, agora que eu tenho um professor, eu não quero mudar de escola. Então, ela me disse que eu vou ficar aqui na escola... e eu fiquei muito feliz!

Nesse momento, ela me deu um beijo “roubado” no rosto, se afastou e foi para a carteira dando aqueles pulinhos que crianças felizes dão e que ninguém mais sabe dar.

Sim! Eu estava totalmente apavorado ali na mesa! O que Amanda buscava em mim? Um substituto para sua “não-professora” anterior, um substituto para seu “não-pai”? Ou apenas uma referência em quem pudesse confiar? Passou-se o ano letivo e descobri que Amanda queria apenas uma referência em que pudesse confiar, mas que isso era mais ou menos como uma mistura de professor, pai e algo mais-ainda, algo que nunca consegui definir.

Aliás, descobri que essa não era apenas uma busca da Amandinha: quase todos os alunos da educação básica buscavam algo mais-ainda em mim, algo além do que o português, a matemática, a geografia que eu pensava lhes oferecer. Na verdade, essa profissão calcada em relações humanas de confiança exigiria de mim sempre mais-ainda do que apenas o conhecimento técnico que a graduação, o mestrado e o doutorado puderam me oferecer, embora alguns “profissionais da educação” — infelizmente! — até hoje se neguem a aceitar isso como parte da profissão.

Depois, em 1990, iniciei minha carreira como docente de uma universidade federal. Pensei que essa demanda por “algo mais-ainda” mudaria lidando com jovens e adultos. Pensei errado! Da mesma forma que entre crianças, o nome “Professor” continua a carregar em si um peso que vai além do melhor conhecimento técnico que eu possa adquirir, algo que tem a ver com as relações humanas próprias da profissão. E daí?

Neste ano de 2020, estamos no mais atípico ano letivo desde que iniciei minha jornada, ainda como professor substituto leigo da educação básica, lá no interior de São Paulo, em 1982. Não tenho qualquer medo de errar afirmando isso. Estamos vivendo um ano “maluco”! Tivemos de nos reinventar profissionalmente e, não raras vezes, pessoalmente. Porém, algo que continuo me perguntando, algo que aprendi a perguntar lá atrás com a Amanda, é:  “O que meus alunos de hoje buscam em mim?”. Agora, nesses tempos complicados, essa pergunta continua vívida e muito relevante. Nesses tempos psicodélico-pandêmicos, uma resposta sensata ao que os alunos têm buscado é: equilíbrio. Equilíbrio pessoal para com eles, equilíbrio pessoal para com meus colegas, equilíbrio na “docência”, equilíbrio nas minhas palavras e nas minhas manifestações públicas por quaisquer meios, enfim, equilíbrio em seu mais amplo sentido.

Como sempre, eles buscam, em nós, algo difícil de alcançar e, mais difícil ainda, de demonstrar. Nem sei se sou capaz de dar isso a eles nesses momentos conturbados. Mas, se não fosse assim, se não se exigisse de nós algo mais relevante do que a identificação do sujeito da frase ou a resposta à equação matemática de segundo grau, que importância haveria em ser professor? Melhor ser um banco de dados eletrônico. Se não fosse assim tão difícil, ao invés de contribuir na construção de caráteres humanos, melhor seria plantar cebolinha. As cebolinhas, pelo menos, não se preocupam com o fato de quem as planta ser “bêbado” ou “agricultor”...

Então, que esse atípico Dia dos Professores de 2020 possa ser de alegrias para todos os que se chamam “professores”, “professoras”, embora as tristezas estejam esvoaçando ao nosso redor. Que possa haver felicidade, apesar das muitas adversidades atuais. E que haja equilíbrio, “mesmo que a corda bambe” (como diz o samba), mesmo que o mundo trema, mesmo que a distância continue a judiar tanto de nós.

Abraços, saúde e paz! 

Outubro de 2020.

Ferrarezi

 

 

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