O que é gramática?

 

Os diversos tipos de gramática e suas funcionalidades

 

LETRA MAGNA: Vamos começar por um questionamento genérico: o que caracteriza uma gramática?

 

STELLA MARIS BORTONI-RICARDO:Gramática” é um termo do léxico do português e de muitas outras línguas. Tanto no português quanto nas línguas europEias, de modo geral, a palavra deriva do latim ‘grammatica, cæ’ , que , por sua vez, originou-se em um étimo grego. Entre os gregos e os romanos, gramática significava ciência gramatical: conjunto de prescrições e regras que determinam o uso considerado correto da língua escrita e falada (Houaiss ). Mas o significado de gramática evoluiu, juntamente com a própria ciência linguística, e tem variado no âmbito das diversas correntes teóricas dessa ciência. A partir do início do século XX, a linguística estruturalista passou a dar ênfase à gramática descritiva das línguas e das variedades de cada língua, relativizando o papel da gramática normativa, considerada uma gramática descritiva de uma das variedades da língua, a saber, a variedade de prestígio, empregada na língua escrita e no desempenho de determinadas funções comunicativas.

 

LETRA MAGNA: Atualmente existem diversos tipos de gramáticas de uma língua: reflexiva, de usos, normativa, teórica... Qual o papel de cada uma delas no cenário atual dos estudos linguísticos?

 

STELLA MARIS BORTONI-RICARDO: As diferentes tendências no estudo da linguagem têm qualificado o termo “gramática” conforme os pressupostos teóricos que lhe são subjacentes. Uma gramática “reflexiva” está de acordo com a definição de competência na teoria chomskiana , em que os dados para a análise são gerados pela introspecção do analista. O adjetivo “reflexiva” também é usado na linguística aplicada ao ensino-aprendizagem de línguas, que enfatiza a reflexão de professores e aprendizes sobre a estrutura e os usos da língua que é objeto de sua aprendizagem. A gramática “de usos” é praticada principalmente pelos adeptos de correntes funcionalistas da linguística, para as quais há uma relação dialética e indissociável entre forma e função no estudo da língua. A gramáticanormativa” preserva o sentido original do termo na cultura greco-romana. Na idade moderna a produção de gramáticas normativas, bem como de dicionários e guias ortográficos, ocorreu com os primeiros empreendimentos de política linguística nos países em formação, empenhados na padronização de uma língua nacional e suprarregional. De acordo com o Círculo Linguístico de Praga, a língua padronizada nas gramáticas normativas cumpre diversas funções relevantes na constituição de uma nação, tais como a função unificadora, a função separatista e a função de quadro de referência. Observe-se também que a padronização da língua é uma etapa importante na construção do sistema burocrático de governo e corre paralela ao desenvolvimento de um acervo de letramento (inclusive a tradição literária) na respectiva nação.

 

LETRA MAGNA: A gramática tradicional normativa foi (e ainda é) vítima de ataques por parte de diversos linguistas no que diz respeito às suas incoerências teóricas. A senhora considera pertinente o posicionamento desses linguistas?

 

STELLA MARIS BORTONI-RICARDO: No Brasil, herdamos uma tendência a valorizar em demasia a chamada gramática normativa, que tem sido objeto até de legislação federal, como a Lei nº 5.765 de 18 de dezembro de 1971, que aprovou alterações na ortografia da língua e a Portaria nº 36 de 28 de janeiro de 1959, do MEC, que propôs a Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB). Essa NGB, desde então, ganhou status de conteúdo programático em todos os níveis de ensino. Ensinar português passou a ser sinônimo de ensinar gramática, em detrimento de um trabalho pedagógico que favoreça a competência comunicativa dos alunos, habilitando-os a desempenhar, com eficiência e segurança, qualquer tarefa comunicativa, na língua oral ou escrita, que se lhes apresente na sua vida social e especialmente profissional. Quando criticam a gramática normativa, os linguistas estão considerando dois fatos: o primeiro é a séria distorção na nossa cultura escolar, que confunde o ensino da língua com a memorização de terminologia gramatical. O segundo é a ignorância das normas prescritivas em relação ao processo de evolução natural da língua e aos estudos descritivos, que se baseiam em metodologias mais atualizadas.

 

LETRA MAGNA: Os falantes comuns (aqueles que não são ligados à linguística) ainda continuam apegados às regras muitas vezes antigas e engessadas contidas nessas gramáticas. Muitas vezes, sequer aceitam as explicações dos linguistas de que há diversas gramáticas. O que está acontecendo? De quem é a falha (se é que ela existe)?

 

STELLA MARIS BORTONI-RICARDO: Os falantes comuns, que não estão familiarizados com a literatura linguística especializada, veem-se muitas vezes diante de polêmicas entre linguistas modernos e gramáticos conservadores em relação a certos usos da língua. A linguística moderna demonstra cientificamente, por exemplo, que determinado traço linguístico considerado “erro” é descendente legítimo de usos correntes em estágios anteriores da história da língua, ou mostra que algumas exigências da gramática normativa não têm fundamento lógico. Os usuários da língua, no entanto, leem em gramáticas e nos muitos manuais publicados pelos órgãos de imprensa que aquele traço deve ser evitado. É o caso, por exemplo, de certas regências verbais (o verbo implicar deve ser usado como transitivo direto ou indireto? O verbo assistir no sentido de presenciar tem de receber complemento indireto? Etc.). Algumas gramáticas normativas mais modernas já vêm incorporando informações fornecidas por estudos linguísticos descritivos, mas, de modo geral, o usuário prefere “se garantir” aderindo à norma prescritivista quando tem de fazer concursos, prestar vestibular, redigir um ofício no seu local de trabalho etc. (a propósito, usa-se ou não se usa vírgula antes de etc.?). Seria desejável que as gramáticas normativas escolares contemplassem o conceito de adequação, bem como informações sobre variação linguística. Assim, poderiam orientar o usuário da língua a fazer a opção certa entre a variante mais tradicional e a mais moderna de uma regra linguística em processo de mudança, de acordo com a situação de fala ou de escrita, com o seu papel social no evento e, principalmente, com seus objetivos comunicativos.

 

Entrevista concedida à revista virtual Letra Magna, ano 03, nº 04, 1º semestre de 2006
Site: www.letramagna.com

 

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