normas-e-conflito

O desenvolvimento das pesquisas científicas sobre a linguagem tem proporcionado a contestação de vários dogmas cristalizados no imaginário comum quando o assunto é a língua e o uso que se faz dela. Apesar dos esforços, não é de espantar que haja ainda muita confusão, seja com relação ao trabalho do linguista (tachado por muitos como defensor de um “vale-tudo”), seja com relação a conceitos que ultrapassaram as fronteiras da ciência e caíram de paraquedas em esferas outras, como a escolar.

Se à escola cabe a divulgação dos saberes também científicos, vale a pena questionar a dificuldade que a Linguística encontra em se fazer integralmente presente no material didático disponibilizado aos estudantes. No entanto, o intuito da presente reflexão não é analisar os empecilhos com os quais se depara a ciência da linguagem para se firmar nos anuais escolares. Ao contrário, será analisado o trato de um termo que já se encontra “assentado” na educação básica: a norma.

Antes, é necessário fazer uma incursão histórica à década de 1960, que assistiu à divulgação mais expressiva dos estudos linguísticos, sobretudo por meio de sua introdução nos cursos de Letras. Na mesma época, também houve um aumento na produção de materiais didáticos, cujas finalidades eram duas principais:

(a) preencher uma lacuna da formação dos professores, tidos, já àquela altura, como profissionais que não estavam sendo formados de modo “adequado”;

(b) formar classes mais populares, por conta da demanda de escolarização por parte do processo industrial que se intensificara (González, apud Zilles e Faraco, 2015: 228)

Diante disso, e mais intensamente nas duas décadas posteriores, os livros didáticos vestiram uma nova “roupagem textual”: os autores tão incensados pelas seletas e pelos florilégios deram lugar a nomes mais modernos e a gêneros até então pouco explorados, como as crônicas e as histórias em quadrinhos. Apesar da “cara nova”, não houve um trato especificamente linguístico do novo corpus. O que se verificou foi, conforme assinala Moura Neves (2014: 49), a disseminação de lições vazias, exercícios mecânicos, uma gramática pífia.

Os primeiros anos de nosso século, ao que parece, não nos trouxeram uma mudança tão significativa nesse paradigma. E pode-se afirmar isso não só pelo trato ainda pouco elucidativo que alguns materiais dão à linguagem, como também pela prevalência de conceitos linguísticos que, caídos de paraquedas no âmbito escolar, ainda são utilizados de modo inadequado, de acordo com os postulados linguísticos. E chega-se, então, à questão da norma.

Embora seja ponto pacífico que do substantivo venham os adjetivos normal e normativo, a imprecisão do termo exigiu que se lhe pusesse um “sobrenome”. Os linguistas, então, propuseram a diferenciação: norma culta e norma-padrão. A despeito da tentativa de estabelecer uma diferenciação, o termo acabou “caindo” nas gramáticas escolares e até hoje gera muita dúvida e muito questionamento.

Muitas vezes, as gramáticas escolares utilizam a expressão “norma culta” como sinônimo de “norma-padrão”, o que é não é adequado por três motivos:

(a)  o primeiro deles é a distinção que se deve fazer entre uma norma “idealizada”, ou seja, não concreta, ainda que indispensável à língua (padrão) e uma norma executada e executável pelos falantes ditos “cultos” (norma culta);

(b)  o segundo é a carga semântica trazida pelo adjetivo “culta”, o qual pressupõe o antônimo inculto;

(c)  o terceiro motivo, relacionado ao segundo, é o fato de muitos linguistas já terem sugerido o abandono dessa nomenclatura.

A despeito de todas essas considerações, a norma culta ainda se faz presente em muitos livros escolares, o que me motivou à quantificação de sua ocorrência, tendo, como base, sete obras adotadas em inúmeras escolas e objeto de inúmeras edições. Com base nesse levantamento, chegamos a dois resultados distintos, partindo de duas premissas:

(a)  a recorrência do termo, ainda que não de modo exclusivo;

(b)  a do uso do termo de modo exclusivo.

A primeira premissa mostrou a ocorrência do termo em três das sete gramáticas analisadas, o que perfaz um total de 43%. Os outros 28% são compostos por gramáticas que se valem do termo norma-padrão, em consonância com os estudos linguísticos. Os 29% restantes são formados por obras que conferem outros nomes à norma-padrão, sem mencionar a dita norma culta.

 

 

O segundo levantamento mostra-nos um número um pouco mais animador, pois somente uma gramática vale-se exclusivamente do termo norma culta para se referir à norma-padrão, o que perfaz um total de 14%. As demais dividem-se na seguinte proporção: 29% utilizam o termo norma culta juntamente com outros termos; 29% utilizam outros termos para se referir à norma-padrão e 28% se valem do termo norma-padrão, tal como a Linguística o concebe.  

 

 

 

Apesar de a análise ser semelhante do ponto de vista dos números, é considerável refletir sobre a ocorrência do termo norma culta em 43% do material analisado. Isso porque ele é tomado como sinônimo de outro conceito, substancialmente diferente, o que denota a tentativa de usar uma “roupagem” aparentemente linguística, ainda que alinhavada equivocadamente, o que a torna torta e sem “caimento” algum.

Considerem-se, agora, os outros materiais que, talvez cientes do “mistério” que envolve a norma, valem-se de nomenclaturas outras para tratar da norma-padrão. Neles, encontramos, entre outros, os termos: língua culta, língua culta formal, padrão formal culto, além de linguagem formal, padrão formal e variedade padrão.

Apesar da tentativa de se afastar da contenda, cai-se aqui em uma série de outras inconsistências do ponto de vista linguístico, como se pode observar, por exemplo, na nomenclatura variedade padrão. Do ponto de vista linguístico, a variedade é uma manifestação apodítica da linguagem, ou seja, empiricamente coletável e documentável, como assinala Bagno (2017: 474). Desse modo, o padrão, que é intangível e abstrato, não se manifesta concretamente em uma variedade, o que nos mostra a inadequação do termo, do ponto de vista linguístico.

Com base na análise apresentada, podem-se lançar dois olhares à questão: um de otimismo, outro de alerta.

(a)  O primeiro reside no fato de haver materiais que apresentam aos estudantes postulados linguísticos concernentes à questão normativa de modo adequado, o que revela a incorporação do saber científico no âmbito escolar.

(b)  O segundo olhar é motivado pela adoção de um termo que pertence à Linguística, tratado com inadequação teórica e cujo uso já é desaconselhado por muitos linguistas. Além disso, é importante ressaltar a profusão de outros termos que também não encontram na ciência da linguagem o respaldo necessário ao seu emprego.

Diante disso, não se evidencia somente a necessidade de inclusão dos conteúdos linguísticos nos materiais didáticos. Evidencia-se também o modo como esses conteúdos são apresentados aos alunos e o quanto podem contribuir (ou não) para a disseminação do saber produzido pela Linguística, para que se saiba não somente o que se ensina, mas se efetivamente se ensina.

Não se questiona aqui a obrigatoriedade do abandono desta ou daquela nomenclatura, até porque há aqueles que ainda utilizem, por exemplo, o termo norma culta no âmbito dos estudos da linguagem. No entanto, é mais do que importante refletir sobre o modo como se empregam determinados termos e também sobre a criação de outros. Se a abordagem linguística é necessária, seja ela feita de acordo com os postulados, a fim de evitar a instauração de conflitos. Essa é a norma!

 

Corpus

CEREJA & MAGALHÃES. Gramática: texto, reflexão e uso. São Paulo: Atual, 2012.
____. Gramática reflexiva: texto, semântica e interação. São Paulo: Atual, 2013.
ERNANI & NICOLA. Gramática de hoje. São Paulo: Scipione, 2014.
FERREIRA, Mauro. Aprender e praticar gramática. São Paulo: FTD, 2014.
PASCHOALIN & SPADOTO. Gramática: teoria e atividades. São Paulo: FTD, 2014.
PASQUALE & ULISSES. Gramática da língua portuguesa – Nova edição. São Paulo: Scipione, 2014.
TERRA, Ernani. Curso prático de Gramática. São Paulo: Scipione, 2013.

 

Referências

BAGNO, Marcos. Dicionário crítico de Sociolinguística. São Paulo: Parábola, 2017.
COSERIU, Eugenio. Teoría del lenguage y lingüística general: cinco estudios. Madrid: Editorial Gredos, 1969.
FARACO, Carlos Alberto. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola, 2008.
NEVES, Maria Helena de Moura. Que gramática estudar na escola? Norma e uso na Língua Portuguesa. São Paulo: Contexto, 2014.
PRETI, Dino. Sociolinguística: os níveis de fala. São Paulo: Edusp, 2000.
ZILLES, Ana Maria Stahl; FARACO, Carlos Alberto (org). Pedagogia da variação linguística: língua, diversidade e ensino. São Paulo: Parábola, 2015.