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Faz muito tempo (talvez até tempo demais) que linguistas e educadoras lamentamos que o ensino de língua ainda insista nas práticas de classificação das palavras e de análise de frases soltas. Em seu livro Gramática na escola (de 1990, ou seja, 32 anos atrás!), Maria Helena de Moura Neves mostrou que quase 70% do tempo das aulas de português eram gastos com tarefas de análise morfológica e análise sintática, enquanto o desenvolvimento das habilidades fundamentais de leitura, escrita e reflexão linguística era deixado à margem. Essa situação decorre, entre outras causas, do fato de 70% das professoras e professores terem se formado em faculdades particulares, a maioria das quais oferece uma formação de baixa qualidade, pasteurizada, padronizada em apostilas que docentes com péssima remuneração têm que “aplicar” sob vigilância cerrada. No caso de língua portuguesa, não são poucos os cursos que se resumem a levar a pessoa em formação a decorar a tradição gramatical de forma acrítica para “ensiná-la” depois, ou seja, para ensinar “a matéria que ninguém aprende”, como disse Mário Perini em seu livro Sofrendo a gramática (de 1997), já que não serve para nada. 

Essa metodologia de ensino limitada à análise morfológica e à análise sintática remonta a pelo menos mil anos! Embora tivesse deixado de ser falado como língua materna, o latim permaneceu durante séculos como a única língua de cultura, a única que era objeto de estudo sistemático. Sem falantes reais e, principalmente, por ser um modelo artificial de língua literária (o chamado “latim clássico”), só era possível aprender latim pela identificação das classes gramaticais a que pertenciam as palavras e pelo papel que exerciam na sintaxe. Não era possível recorrer a ninguém que tivesse o latim como língua materna quando surgisse alguma dúvida (tal como fazemos hoje quando aprendemos alguma língua estrangeira viva). Não admira que, no período medieval, gramática fosse sinônimo de latim. Quando as línguas faladas nas diferentes regiões da Europa começaram a ser padronizadas, dicionarizadas e ortografizadas (acabei de inventar esse verbo!) e quando, já bem avançado o período moderno, começaram a ser ensinadas, a metodologia de estudo das línguas mortas (latim e grego clássicos) foi transferida tal e qual para o estudo das línguas vivas — um claro equívoco pedagógico que, infelizmente, se perpetua até hoje, e em vários lugares do mundo.

 “A fixação de uma nomenclatura gramatical tenta delimitar fronteiras para entidades que, de fato, circulam alegremente de um lado para o outro.”

O ensino de língua apegado à classificação das palavras, classificação que se faz por meio de uma nomenclatura gramatical, é muito problemático porque os termos empregados são confusos, inexatos quando não simplesmente errados. Além disso, a fixação de uma nomenclatura engessa a reflexão sobre o objeto em análise, tenta delimitar fronteiras para entidades que, de fato, circulam alegremente de um lado para o outro. A história de todas as áreas de conhecimento é, em boa parte, a história das críticas e das revisões das terminologias empregadas em cada especialidade. A definição de classe social, por exemplo, tem evoluído ao longo da história e depende da teoria sociológica em que o termo é empregado, às vezes até de formas conflitantes. No caso da análise linguística, podemos elencar diversos problemas na nomenclatura gramatical que até hoje norteia tanto o ensino de língua quanto a produção de livros didáticos. Vamos ver alguns.

Podemos começar com a definição clássica de substantivo como “palavra que designa os seres em geral”. Para entendermos essa definição necessitamos, previamente, de uma definição de ser — e faz quase três milênios que a filosofia se debate com essa definição. No dicionário Houaiss, por exemplo, aparece esta beleza no verbete ser: “O que existe realmente; aquilo que é”, uma definição que usa o próprio verbo ser (na forma é) para definir o ser. Ora, na frase “vou tomar um banho”, sabemos que banho é um substantivo – mas banho é um ser?

Lemos nas gramáticas que sujeito e predicado são os termos essenciais da oração. Mas logo adiante aparecem orações sem sujeito. Uai, se para uma oração ser o que é precisa ter sujeito e predicado, como pode haver orações sem sujeito? Imagine um livro de biologia que diz que os seres humanos têm cabeça, tronco e membros e, logo a seguir, fale de seres humanos sem tronco!

 “Uai, se para uma oração ser o que é precisa ter sujeito e predicado, como pode haver orações sem sujeito?”

Na tradição gramatical do português, o termo pronome é aplicado a palavras que, em outras línguas, são chamadas de adjetivos. Quando digo “meu pai é mais velho que o teu”, o meu de meu pai não pode ser um pronome, porque um pronome é uma palavra que faz a retomada anafórica de um sintagma nominal enunciado anteriormente (jogue no lixo essa bobagem de que “o pronome substitui o nome”!). O meu de meu pai não está retomando nada, mas o teu de o teu, sim, está retomando pai. Um pronome não pode ser seguido de um nome, porque nomes e pronomes exercem as mesmíssimas funções sintáticas, isto é, podem ser sujeito, complemento, adjunto etc. Como em português os adjetivos possessivos e os pronomes possessivos (assim como os demonstrativos) têm a mesma forma, a nomenclatura pregou em todos eles o rótulo de pronome, injustificadamente. Em espanhol, em mi libro temos o adjetivo possessivo mi, que qualifica libro, e em el mío (“Este libro no es el mío”), temos mío, que é um pronome. Em francês temos, mon livre e le mien; em inglês, my book e mine. Em italiano as formas também são as mesmas (mio libro e il mio), mas recebem classificação diferente conforme sejam adjetivos (mio libro) ou pronomes (il mio). Se em meu livrotemos um “pronome” meu, então vamos ter de chamar de pronome também o belo de belo livro!

 “Como em português os adjetivos possessivos e os pronomes possessivos (assim como os demonstrativos) têm a mesma forma, a nomenclatura pregou em todos eles o rótulo de pronome, injustificadamente.”

Pelos próprios critérios da tradição gramatical, não faz sentido falar de uma “classe” das interjeições e de uma “classe” dos numerais. Qualquer palavra da língua pode ser uma interjeição, desde que seja gritada por alguém! E os numerais são determinantes, nomes, pronomes ou adjetivos, dependendo do contexto em que aparecem. Mais sentido faz incluí-los numa classe de quantificadores, que inclui os quantificadores definidos (dois, quarenta, mil e duzentos...) e os indefinidos (algum, todo, qualquer...).

 “Qualquer palavra da língua pode ser uma interjeição, desde que seja gritada por alguém!”

Problemas também existem nos rótulos fixados para os tempos e modos verbais. Num enunciado como “o atual governo tem patrocinado todas as formas possíveis de violência social”, a forma tem patrocinado é classificada como “pretérito perfeito composto”, o que é um equívoco total. Pretérito quer dizer “passado”, mas essa forma verbal se refere ao presente: o atual governo vem patrocinando / continua a patrocinar / está patrocinando todas as formas possíveis de violência social aqui e agora, desde que assaltou o poder. É certo que começou em 2019, mas não parou, a tragédia prossegue. E justamente por estar em andamento é que não se pode falar de perfeito, um termo herdado da gramática latina para designar ações concluídas, acabadas. Quem sabe presente imperfeito fosse um nome melhor, para combinar com o pretérito imperfeito?

Outro equívoco está no rótulo de futuro do pretérito para as formas verbais do tipo comeria, chegaria, partiriaetc. Em espanhol, francês e italiano a classificação empregada é condicional, conditionnel, condizionale, e também em inglês o auxiliar would é empregado para a expressão do conditional moodMood? Sim, o condicional não é um “tempo” verbal, é um modo. O modo verbal expressa a atitude da pessoa que fala com relação àquilo que está falando — e condicionar o que está sendo dito é o que pode haver de mais “atitudinal” na fala! Se digo “eu adoraria que todos os crimes cometidos pelo despresidente fossem rigorosamente punidos”, qual é o “tempo” que está expresso em adoraria? Tempo nenhum, o que está ali expresso é um modo de eu me posicionar, de exprimir uma suposição ou uma hipótese — não por acaso, o condicional é usado em paralelo, nesse tipo de enunciado, com o subjuntivo, que é também um modo verbal que expressa fato irreal, desejo, possibilidade, dúvida etc. Quando, por outro lado, digo que “somente dez anos depois de ter lançado Sagarana é que Guimarães Rosa publicaria um novo livro”, aqui, sim, temos um tempo verbal, que expressa uma ação futura com relação a um estado de coisas situado no passado, ou seja, um futuro do pretérito. Mas esse uso é, de fato, uma expansão metafórica da semântica própria do modo condicional, não é o seu uso característico, primordial. Além disso, esse emprego do condicional como futuro do pretérito é de frequência muito baixa. Numa pesquisa que fiz utilizando dezenas de horas gravadas de língua falada por pessoas classificadas como “cultas”, encontrei 224 verbos do tipo comeria, falaria, diria, dos quais 213 tinham semântica condicional e somente 13 exprimiam o tempo futuro do pretérito, ou seja, 98,5% contra 4,5%. Por que então usar um termo que designa a minoria de uma minoria de usos? 

 “Engessar a nomenclatura gramatical é engessar o avanço da reflexão sobre a língua.”

nomenclatura gramatical tem valor heurístico (ou seja, permite uma aproximação à realidade dos fatos, uma explicação do fenômeno), mas é sempre um valor provisório, que pode (e deve) ser revisto e recalculado à medida que avançam a teoria e a prática. Engessar a nomenclatura gramatical é engessar o avanço da reflexão sobre a língua. Além disso, no que diz respeito especificamente ao ensino de língua, não tem cabimento insistir em querer levar alguém a conhecer a terminologia gramatical tradicional, suas definições (problemáticas) e suas supostas aplicações. Numa pesquisa com livros didáticos de português, encontrei uma coleção destinada ao Ensino Fundamental 1 que apresentava nada menos do que 244 termos gramaticais (mal) definidos, “aplicados” nas atividades e “cobrados” das alunas e dos alunos. Em outra coleção, encontrei a seguinte definição de substantivo abstrato: “Ser que não tem existência própria e que por isso depende de outro para existir”. Metafísica para crianças de dez anos de idade? Esconjuro! O uso parcimonioso de alguns termos básicos (nome, adjetivo, verbo, preposição...) pode ser interessante no processo de ensino-aprendizagem da língua, mas como instrumentos para sistematizar o conhecimento assimilado, nunca como “conteúdo” em si mesmo.

Num país em que o número de pessoas analfabetas plenas e analfabetas funcionais ultrapassa a centena de milhões, o objetivo primordial do ensino de língua deveria ser a introdução das e dos aprendizes na cultura letrada em que vivem, isto é, deveria ser a prática ininterrupta da leitura e da escrita, da releitura e da reescrita. Por que usei o modo condicional, deveria? Porque isso é uma utopia no mesmo país em que também se contam em centena e meia de milhões as pessoas que passam fome, enquanto um ministro da educação é preso por corrupção e seus antecessores, igualmente criminosos, circulam livres e impunes.