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É em Rayuela (O jogo da amarelinha), se não me lembro mal, que o escritor argentino Julio Cortázar define os dicionários como cemitérios de palavras. Além da irônica referência a certa tradição lexicográfica conservadora que demorava para incluir novos verbetes nas páginas desses instrumentos linguísticos, tal definição também revela a artificialidade desses repositórios de palavras, onde elas descansam afastadas do seu uso, isoladas de qualquer contexto, imobilizadas em seus significados comuns.

As palavras adquirem sentidos diversos nas práticas linguísticas concretas e nunca andam sozinhas. Mas existem também dicionários destinados a mostrar suas combinações mais habituais: são os chamados “dicionários de combinatórias”. Tomando como base um corpus da linguagem em uso, esses dicionários identificam, por exemplo, os adjetivos que costumam estar associados a um substantivo ou os verbos que ele costuma seguir ou anteceder. O Google, essa ferramenta oracular que tudo sabe, dá pistas combinatórias ao nos fazer propostas de busca quando digitamos uma palavra, com base nas que são mais habituais. Se digitamos o verbo cancelar, a janela que se desprega nos propõe procurar coisas como ~ mei~ netflix~ amazon prime~ assinatura o globo~ net~ spotify~ globoplay~ email outlook~ smart fit. E este é um registro do que, pelo visto, as pessoas andam querendo cancelar no Brasil.  

As definições só pensam em anularinterromper ou invalidar passaportesassinaturas ou licenças. O dicionário ainda não se tocou de que por aqui andam cancelando gente. Mas era evidente que a necropolítica de que fala Achille Mbembe, a produção e a gestão política da morte, a decisão soberana sobre quem pode viver e quem deve morrer, teria de ter a sua própria linguagem. “Cancelar o CPF” é uma expressão miliciana, nascida entre os esquadrões da morte do Rio de Janeiro, que ocupou os platôs televisivos dos programas pinga-sangue e acabou se sentando na cadeira da presidência da República, agora transformada de vez numa República das Milícias, em expressão cunhada por Bruno Paes Manso. Parece um simples eufemismo, mas é um atestado linguístico da necropolítica em ação, para a qual a expressão máxima da racionalidade ocidental é uma combinação de racismo e burocracia, já desde os massacres que o colonialismo europeu realizava na África e na Ásia, como explica Hannah Arendt. Aqui, a chacina é concebida como rotineira operação burocrática, que tira vidas descartáveis, reduzidas ao seu número de identificação fiscal. O escárnio não seria completo se o documento escolhido para revelar (e ocultar) a morte das pessoas não fosse o que nos identifica como contribuintes e consumidores (em vez de, por exemplo, o título de eleitor ou o RG, que também compõem a lista de documentos imprescindíveis na vida cívica do país). 

A linguagem verbal esconde os corpos, mas o “CPF cancelado”, mais do que um eufemismo para ocultar o crime que o Estado realiza diante dos nossos olhos, é deboche repleto de sadismo. Por definição, a polícia cancela apenas o CPF de bandidos, que, para a necrolinguagem brasileira — e na ausência de garantias judiciais, de processos conduzidos de acordo com a lei e mesmo na inexistência de pena capital na legislação vigente —, é um substantivo que designa uma categoria ontológica: pessoas matáveis, de raça negra e que moram em favelas. Na inversão semântica que a necrolinguagem produz, os direitos humanos seriam defensores de bandidos, personificação que converte substantivos abstratos em nomes que remetem a sujeitos concretos, indivíduos que supostamente desejariam destruir a ordem social com sua inexplicável e perversa afeição ao crime. Uma característica da linguagem fascista é, precisamente, retorcer e torturar as palavras até fazê-las confessar o que não são. É por isso que o nazismo, para denominar o extermínio de ciganos, comunistas, homossexuais e judeus, burocratizado na produção industrial de morte nos campos de concentração, utilizava um sintagma auspicioso de mundo feliz com as contas bem-feitas: Solução final.   

Mas os corpos somem não apenas na linguagem verbal, eles também estão ausentes na linguagem visual. As fotos publicadas nos jornais sobre a chacina do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, são cenários sem corpos, com manchas de sangue no chão, nas paredes, numa cadeira. Numa delas, sobre o sangue já seco, há um porta-retratos vermelho em forma de coração e uma toalha cor-de-rosa. A foto nos comove porque sabemos que é o quarto de uma menina. Mas devemos fechar os olhos e fazer um esforço de imaginação gigante para sentir o fedor do sangue, e antes disso, os gritos, as explosões secas dos tiros, os choros, o cheiro da pólvora e do medo. Nada disso é evidente nessas imagens sanguinolentas que já vimos antes em filmes de Tarantino e no açougue da esquina. O mais parecido com um corpo humano é um fardo carregado por quatro policiais pelas ruelas da favela. Os CPFs cancelados no Jacarezinho, além de não terem corpo, também não têm nome até dois dias depois da chacina, quando a polícia civil divulga a lista de vítimas da “operação”. 

A primeira guerra televisionada sem corpos mortos que eu pude presenciar foi a do Golfo de 1991, a empreendida pelo Bush-pai contra o Iraque de Sadam Hussein. Os bombardeios estadunidenses eram apenas linhas verdes com esplendores brancos atravessando a tela da televisão, como um videogame. Depois seriam os drones, muito mais discretos, os encarregados de levar uma morte limpinha e cirúrgica aos inimigos do império. A necrolinguagem da época escondia os corpos das vítimas num asséptico sintagma que remetia ao mundo límpido da gestão operacional: Efeitos colaterais. Já a guerra do Bush-filho, denominada War on Terror (Guerra ao Terror), tampouco tinha um inimigo reconhecível, apenas um “sentimento” de noite de pesadelo. E não tendo gente do lado em que as bombas explodem, não há motivo para dúvidas nem arrependimentos do lado de cá.  

A virtualidade digital não tem que fazer muito esforço para esconder corpos. Cancelar pessoas na internet é uma forma de banimento social de desafetos que os dicionários ainda não registram. Não é para ninguém se sentir culpado por participar do gozo coletivo do entretenimento de massas, mas não acham tristemente irônico que o debate público sobre essas formas de exclusão tenha sido feito aqui entre nós, precisamente, no Big Brother? Um concurso da Globo que consiste em eliminar pessoas umas do convívio das outras, em que os telespectadores participam com seu voto em paredões semanais, como franco-atiradores em macabra comunhão festiva. 

E aqui a necrolinguagem, que desliza sorrateira para os gestos cotidianos, encontra o seu limite. Na morte silenciosa de mais de 400.000 pessoas durante a pandemia, um autêntico cancelamento em massa de CPFs, a ausência dos corpos amados é uma dolorosa vivência íntima e cotidiana que está além das palavras.