Não é errado falar assim! Em defesa do português brasileiro

Entrevista com Marcos Bagno

 

Por que o título Não é errado falar assim?

MB: É uma reação vigorosa a toda uma série de publicações sobre língua e ensino de língua que abarrotam as estantes das livrarias e até as bancas de jornal. São livros e manuais, sempre produzidos por autoproclamados “especialistas”, mas de fato gente sem nenhuma fundamentação teórica, científica consistente.

 

Em suma, pessoas que não têm nenhuma formação para tratar dos assuntos que tratam, que não estão engajadas nas intensas pesquisas que vêm sendo feitas sobre língua e ensino de língua no Brasil nos últimos quarenta anos e que têm produzido frutos importantíssimos.

 

Por que é necessário reagir a essas publicações?

MB: Porque elas são, para falar sem rodeios, mentirosas e desonestas. Essas obras que têm títulos como “Não erre mais”, “Os 500 erros de português mais comuns”, “Manual de redação e estilo do jornal X” tentam preservar a ferro e fogo noções mais do que ultrapassadas de “certo” e de “errado”, querendo impor regras que até mesmos os gramáticos normativos e os dicionaristas profissionais relativizam ou mesmo consideram incoerentes.

 

Essas publicações fazem parte daquilo que eu tenho chamado de comandos paragramaticais, que também incluem programas de televisão e rádio, sites da internet, colunas de jornal e de revista e outras manifestações da multimídia sobre “português correto”.

 

Seus autores querem ser mais realistas do que o rei, dizem se inspirar na tradição gramatical, mas o que realmente fazem é oferecer um modelo de língua “certa” que não correesponde a nenhum uso real, nem mesmo dos escritores consagrados (desde o Romantismo, no século XIX!) e, muito menos, das pessoas cultas e letradas da época atual.

 

Essas pessoas cultuam e tentam difundir aquilo que o linguista Carlos Alberto Faraco chama de norma “curta”, que é muito mais uma ideologia linguística (conservadora) do que um modelo de língua. Em livro mais recente, o mesmo Faraco acusa essas pessoas de praticar “charlatanismo gramatical”. Para piorar o quadro, a defesa dessa mesma norma “curta” aparece na maioria dos livros didáticos de português disponíveis no mercado.

 

Você poderia dar exemplos dessa “norma curta” ou desse “charlatanismo”?

MB: É muito fácil. Num livro didático de português (publicado em 2008) encontrei a seguinte afirmação: “não são recomendados pela variedade padrão frases como: As leis não foram obedecidas”. Ora, na gramática de Celso Cunha e Lindley Cintra (publicada em 1985!), aparece exatamente o oposto dessa prescrição: “Obedecer”.

 

Admite, no entanto, VOZ PASSIVA: ‘Sofreste tanto que até perdeste a consciência do teu império; estás pronta a obedecer; admiras-te de seres obedecida.’ (Machado de Assis)”. Vamos ter que corrigir agora Machado de Assis? Mas ele não é o tempo todo apresentado como o nosso maior escritor?

 

Outro exemplo: no Manual de Redação e Estilo do jornal O Estado de S.Paulo aparece o seguinte: “Ela era ‘meia’ louca. Meio, advérbio, não varia: meio louca, meio esperta, meio amiga”. No entanto, no dicionário Aurélio, encontramos, no verbete “meio”, a seguinte explicação: “Há muitos exemplos, no português antigo como no moderno, desse advérbio flexionado (caso de concordância por atração)”, e ele oferece de novo exemplos tirados da obra de Machado de Assim: "a cabeça do Rubião meia inclinada", além de Eça de Queirós e Luís de Camões.

 

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É o caso da gente perguntar então se deve confiar num filólogo com profundo conhecimento da história da língua e da tradição literária ou num jornalista sem nenhuma formação específica (caso do falecido Eduardo Martins, autor do manual do Estadão).

 

Quando se trata de sala de aula, a situação é ainda mais grave: confiamos nos autores dos livros didáticos ou no Aurélio, no Houaiss, no Celso Cunha, no Evanildo Bechara? Isso para mencionar apenas gramáticos e dicionaristas filiados à tradição normativa. Se entrarmos no campo da linguística científica, a coisa fica ainda mais séria.

 

Quais as diferenças então entre essa “norma curta” e a verdadeira “norma culta”?

MB: Essa é uma pergunta que exige alguns esclarecimentos prévios antes de ser respondida. A norma “curta” já vimos o que é: um modelo ultrapassado de língua “certa”, mentiroso e desonesto, que não encontra apoio nem mesmo na boa tradição gramatical.

 

Mas definir a “norma culta” já é bem menos fácil. Isso porque esse rótulo é aplicado, sem distinção, a duas coisas muito diferentes. A primeira delas é um conceito muito antigo, que existe no mundo ocidental há mais de 2.500 anos. É a ideia de que a língua “certa”, “boa”, “bonita” se encontra no trabalho estético dos maiores escritores do passado, os chamados “clássicos da língua”.

 

Essa ideia está presente na expressão “imitação dos clássicos”, que sempre esteve presente nos projetos educacionais das grandes línguas. Para você ser “alguém na vida”, é preciso escrever como Eça de Queirós e Machado de Assis. Não só escrever, mas falar também. Essa é a noção de “língua culta” que aparece, por exemplo, na gramática de Celso Cunha e Lindley Cintra.

 

Lá eles escrevem que sua gramática quer descrever a língua culta, “isto é, a língua como a têm utilizado os escritores portugueses, brasileiros e africanos do Romantismo para cá”. Esse é um conceito muito estreito e estrito de “língua culta”, porque desconsidera completamente todo o universo da língua falada e também todos os demais e incontáveis usos da escrita.

 

Para evitar confusões, os linguistas preferem chamar esse modelo de língua de “norma-padrão”. A principal característica da norma-padrão é que ela não é falada nem escrita integralmente por ninguém, não corresponde a nenhum uso real da língua.

 

Esse é o primeiro conceito de “norma culta”. E qual é o segundo?

 

MB: Diferentemente da tradição gramatical, os linguistas chamam de “norma culta” o conjunto de formas linguísticas realmente, autenticamente, comprovadamente empregadas pelos falantes classificados de “cultos”, isto é, nascidos e criados em ambiente urbano, inseridos na cultura letrada e com grau de escolaridade superior completo.

Esse conceito de norma culta se apoia em pesquisas, em coleta de dados e em análises feitas sob perspectivas teóricas consistentes. Desde os anos 1970 existe no Brasil um grande acervo de língua falada culta, milhares de horas de gravações da fala de brasileiras e brasileiros de diversas regiões do país, de diferentes profissões, de faixas etárias diferentes, mas todas e todos com curso superior completo e elevado grau de letramento.

 

É o acervo do Projeto NURC (Norma Urbana Culta). Todo esse material tem sido estudado atentamente. Centenas de pesquisadores vêm se debruçando sobre ele para comporem um retrato minimamente fiel da norma culta brasileira contemporânea. E já começaram a publicar uma Gramática do português culto falado no Brasil.

 

Mas essa norma culta, pelo visto, só diz respeito à língua falada. Como fica a língua escrita?

MB: O conhecimento da norma culta falada é importantíssimo porque ele permite fazer um bom retrato também da escrita culta. Ao contrário do que a maioria das pessoas pensa, não existe uma diferença radical, um abismo profundo entre fala e escrita.

 

Essa visão distorcida nasceu de comparações equivocadas: as pessoas comparam a fala mais espontânea, descontraída, informal, com textos altamente formais, literários etc. Mas, quando comparamos fala informal com escrita informal e fala formal com escrita formal, as semelhanças são muito maiores do que as diferenças. Conhecendo bem a norma culta falada podemos entender muito do que acontece também na norma culta escrita.

 

O quê, por exemplo?

MB: Já está provado e comprovado pelas pesquisas que, no português brasileiro, de todas as classes sociais, quando o verbo aparece antes de seu sujeito, nós não fazemos a concordância. Por isso, dizemos o tempo todo coisas como “segue as informações pedidas”, “veio só os convidados da noiva”, “foi totalmente inútil os protestos contra o aumento da gasolina”, “chegou as férias” e por aí vai.

 

Isso é tão natural e já está de tal modo enraizado na nossa fala, incluindo a fala de pessoas altamente letradas, que ninguém (ou praticamente ninguém) estranha essa não concordância. Ora, como o impacto da fala sobre a escrita é enorme, porque nossa intuição linguística é muito poderosa, começa a aparecer com cada vez mais frequência usos escritos, em textos formais, dessa não concordância.

 

Num artigo assinado por linguistas brasileiros e publicado numa revista internacional encontrei o seguinte exemplo: “só resta ao professor de português duas opções”. A língua muda o tempo todo. Essa não concordância representa uma mudança na língua, uma mudança já bem instalada e, por isso, é impossível reverter a situação.

 

Essa inovação já pertence à língua materna de todos os brasileiros. Em vez de tentar dar murro em ponta de faca, é mais tranquilo e sereno admitir que agora existem duas regras de concordância com o sujeito posposto ao verbo: “chegou as férias” ou “chegaram as férias”. E vamos cuidar de outras coisas, mais importantes e mais urgentes.

 

De acordo com o que você disse até agora, a norma “curta” aparece nos livros didáticos e nas obras produzidas por não especialistas, enquanto a norma-padrão se encontra nas gramáticas e nos dicionários tradicionais. E a norma culta real, contemporânea? Onde é que podemos encontrá-la, por exemplo, no caso de uma dúvida sobre como falar ou escrever?

MB: Até o final do século passado, nós não tínhamos no Brasil nenhuma fonte confiável de descrição da norma culta real, autêntica. Por isso, os propagadores da norma “curta” faziam e fazem tanto sucesso.

 

Felizmente, os linguistas profissionais começaram a se dar conta de seu papel político e de seu compromisso social e passaram a produzir obras importantes, com muita consistência teórica, descrevendo o português brasileiro culto contemporâneo. Hoje em dia, não podemos mais dizer, como se dizia quinze, vinte anos atrás, “vocês, linguistas, criticam a tradição gramatical mas não colocam nada no lugar dela”.

 

Já colocamos. Agora é a vez de professoras e professores e outras pessoas comprometidas com a educação linguística se debruçarem sobre esse material, estudá-lo e promover uma transformação do objeto e do objetivo de ensino de língua nas escolas.

 

Que obras são essas?

MB: Na ordem cronológica de publicação: Gramática de usos do português, de Maria Helena de Moura Neves; Gramática Houaiss da língua portuguesa, de José Carlos de Azeredo; Gramática do português brasileiro, de Mário Perini; Nova gramática do português brasileiro, de Ataliba de Castilho; Gramática pedagógica do português brasileiro, de Marcos Bagno.

 

Mas são obras acessíveis a um público não especializado?

MB: Por enquanto, podemos dizer que são obras técnicas, voltadas para a formação do profissional da educação linguística. É um passo muito importante, mas o caminho a percorrer ainda é muito longo. Afinal, são 2.500 anos de tradição gramatical, não dá para competir em pé de igualdade.

 

O fundamental, eu acho, é que sobretudo as autoras e os autores de livros didáticos abandonem seu apego à norma “curta”, reconheçam a necessidade imperiosa de rever seus conceitos de língua “certa”, e comecem a produzir material pedagógico honesto, com base na pesquisa científica acumulada. Isso acontece em todas as outras áreas de ensino.

 

Os livros de História, Geografia, Ciências, Matemática etc. são sempre atualizados de acordo com as novas descobertas dessas áreas de conhecimento. Por que só em Português temos que continuar a ensinar equívocos conceituais como “sujeito é o ser sobre o qual se declara alguma coisa”? Ou a insistir na existência de uma “voz passiva sintética”, que nunca existiu de fato?

 

Mas, retomando a pergunta anterior: e para a pessoa não especializada que tiver alguma dúvida?

MB: Já temos à nossa disposição algumas obras que podem substituir com muito proveito os manuais do tipo “não erre mais” e outros propagadores da norma “curta”.

 

Eu recomendo, por exemplo, o Guia de usos do português, de Maria Helena de Moura Neves, e também o ABC da língua culta, de Celso Pedro Luft. São obras organizadas em verbetes, isto é, como se fossem dicionários, em que os fatos gramaticais que causam as dúvidas mais frequentes são examinados, descritos e explicados.

 

Nessas obras, as opções tradicionais aparecem lado a lado com as formas mais inovadoras, que são apresentadas como possibilidades tão legítimas de uso quanto as mais antigas. Fica ao gosto da freguesa, por exemplo, falar ou escrever “a hora de a onça beber água” ou “a hora da onça beber água”, porque as duas formas existem na língua culta, convivem bem e são, por isso, igualmente legítimas.

 

Também posso recomendar a minha Gramática de bolso do português brasileiro, que é uma versão bem sintética e reduzida da Gramática pedagógica do português brasileiro.

 

E o Não é errado falar assim?

MB: Ah, sim, claro! Esse livro traz alguns dos fenômenos que sofrem os ataques mais ferozes dos comandos paragramaticais e dos militantes da norma “curta”. A linguagem é simples, clara e voltada para qualquer pessoa. Ali eu mostro que esses ataques não têm fundamento nenhum a não ser uma ideologia retrógrada, conservadora. Analiso os fatos linguísticos, explico o que aconteceu, e apresento muitos e muitos exemplos dos usos inovadores na escrita formal.

 

A palavra chave desse livro é também: a gente pode falar e escrever “alugam-se casas” mas também pode falar e escrever “aluga-se salas”, porque a construção nova, sem concordância, é muito mais lógica e racional do que a antiga, mas como a antiga ainda ocorre em textos formais, cada pessoa que use o que melhor lhe parecer. O que não se pode permitir é a tentativa de reprimir o irreprimível, que é a inevitável mudança das línguas.

 

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