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 A QUE SERÁ QUE SE DESTINA?

  

Tradicionalmente, conceitua-se a linguística histórica como o campo da linguística que trata de interpretar mudanças no devir temporal, em diferentes níveis de análise linguística. A professora Rosa Virgínia Mattos e Silva (2008: 8-9), para além dessa conceituação, propôs, na introdução do livro Caminhos para a linguística histórica: ouvir o inaudível, que se podem admitir duas grandes vertentes desse campo de estudos: uma linguística histórica lato sensu, que contempla quaisquer trabalhos que se debrucem sobre estudos com dados datados e localizados, e uma linguística histórica stricto sensu, que é aquela que se debruça sobre o estudo da mudança linguística.

 

No mesmo texto, ao responder à questão “qual a relação entre linguística histórica e linguística teórica?”, Mattos e Silva dá o exemplo do PROHPOR (Programa Para a História da Língua Portuguesa), sediado na UFBA. A autora conta que, para que o referido programa de pesquisa, fundado por ela, superasse a questão “que linha teórica seguir?”, optou-se não pelo ecletismo teórico, que seria uma mescla ingênua de teorias mesmo irreconciliáveis, mas por heterodoxos, isto é, diferentes bases teóricas (sempre com coerência e consistência, é claro) poderiam ser utilizadas a fim de reconstituir a sócio-história do português brasileiro.

 

qual a relação entre linguística histórica e linguística teórica?

 

Hoje, muitos linguistas, orientados por um fazer histórico conhecido como história vista de baixo (cf. Sharpe, 1992), preocupam-se em historicizar a língua portuguesa no Brasil a partir do viés não das elites, mas, antes, das vozes dos dominados. A sociolinguística e os estudos sobre a história da cultura escrita no Brasil são duas das possibilidades de ver historicamente a língua sob essa perspectiva (mas isso podemos discutir em outro momento).

 

A linguística histórica é uma área bastante profícua no Brasil. Há muitas maneiras de contribuir com a reconstituição da história do português brasileiro e muitos linguistas, orientados por escopos teóricos diversos, já o têm feito. Uma abordagem bastante interessante é aquela que faz uma história sociopolítica da língua (cf. Müller de Oliveira, 2000; Faraco, 2009; 2016 etc.).

 

Há muitas maneiras de contribuir com a reconstituição da história do português brasileiro

 

Em termos sociopolíticos, é interessante perguntar como o português, usado, no século XVI, por cerca de 30% da população no Brasil (cf. Mussa, 1992; Mattos e Silva, 2004) passou a ser utilizado por 98% dos brasileiros, segundo censo do IBGE de 2010. Em outras palavras, o que aconteceu com as mais de 1.500 línguas indígenas que parecem ter existido antes da chegada dos portugueses (cf. Houaiss, 1985)? E o que aconteceu com as tantas línguas africanas com as quais o português conviveu durante séculos? Hoje, para o espanto de quem se debruça sobre esses números, há apenas 2% dos habitantes do Brasil que não falam português como língua materna (falam-se, em alguns lugares, línguas indígenas e línguas de imigração) e nenhuma comunidade tem uma língua africana como primeira língua.

 

Essa drástica redução das línguas indígenas no Brasil se explica pelo processo etnocida e glotocida pelo qual passaram os índios ao longo dos períodos colonial e imperial do país. Isso significa dizer que, como o número de índios no Brasil decresce vertiginosamente ao longo dos séculos, também desaparecem as línguas por eles faladas. Em relação às línguas africanas, é importante lembrar que seus utentes precisavam abandoná-las, quando chegavam ao Brasil. As pessoas retiradas da África para serem escravas aqui eram “misturadas” em diferentes regiões brasileiras, numa seleção negativa, com o objetivo de elas não conseguirem comunicar-se e, portanto, rebelar-se contra a escravidão.

 

pessoas retiradas da África para serem escravas aqui eram “misturadas” em diferentes regiões brasileiras

 

Ademais, as políticas linguísticas (assim designadas hoje – vamos cuidar para não cometermos anacronismos) que se observam no Brasil sempre foram um claro projeto de nação monolíngue. O silenciamento dos dominados – a partir, por exemplo, de seu rebatismo (os nomes de índios e negros eram abandonados como forma de silenciar sua identidade, o que interessa às pesquisas que se debruçam sobre o léxico antroponímico) e da obrigatoriedade do abandono de suas línguas maternas e da aprendizagem ou aquisição do português – comprova esse projeto político. Há, portanto, ao longo de toda a história do Brasil, um processo de glotocídios, silenciamentos e violência simbólica (cf. Bourdieu, 1989) contra os dominados e suas línguas.

 

Para demonstrar, sucintamente, avanços e entraves que há na linguística histórica brasileira, cabe comparar duas importantes obras dessa área: Introdução ao estudo da língua portuguesa no Brasil, de Serafim da Silva Neto (1950) e Língua e sociedade partidas: a polarização sociolinguística do Brasil, de Dante Lucchesi (2015). Na primeira obra, costumeiramente tomada como um dos marcos importantes do processo de investigação concentrado nas características do português brasileiro, lançada no mesmo ano em que Portugal, sob regime ditatorial, se recusou a abrir mão dos territórios que ocupava, utilizando, em reação às deliberações da ONU condenando os colonialismos, o discurso da missão civilizadora, Silva Neto defende a tese da vitória da língua portuguesa pelo seu prestígio superior – discurso interpelado pela mesma ideologia da ditadura portuguesa de 1950 (que, infelizmente, continua interpelando, até hoje, outros discursos sobre língua e sobre as relações de poder que lhe subjazem). Na segunda obra, Lucchesi, utilizando todo o desenvolvimento dos estudos sobre a constituição histórica do português brasileiro, longe do discurso hegemônico da ex-colônia e longe de um paradigma de escrita da história baseada na visão das elites, defende que há, no Brasil, uma polarização sociolinguística explicada pelo processo econômico-social de formação da nação brasileira.

 

baseada na visão das elites, defende que há, no Brasil, uma polarização sociolinguística

 

Não obstante se observarem inúmeros avanços em relação ao modus operandi de fazer história da língua e aos estudos sobre as especificidades da vertente americana da língua portuguesa, é ainda necessário discutir se as políticas linguísticas em voga no Brasil hodierno têm sido capazes de fazer com que os brasileiros reconheçam o seu protagonismo enquanto falantes de português, explicado não só em termos quantitativos (somos o país com maior número de falantes de português do mundo), mas também pelo fato de que falamos uma língua diferente daquela utilizada por Portugal – processo que tem sido chamado, nos termos de Orlandi (2009), de descolonização linguística. Ademais, cabe perguntar se a linguística histórica que se faz hoje no Brasil é eficiente em seu processo de aplicabilidade social, para diminuir a grande avaliação negativa que se faz em relação às formas típicas dos falares populares do país (que são exatamente aquelas afetadas pelo massivo contato que o português manteve, ao longo de séculos, com línguas autóctones e alóctones). Por fim, urge problematizar se o trabalho com a escrita da história linguística do Brasil tem dado importância a todas as línguas aqui faladas ou tem repetido o já conhecido processo de glotocídio, silenciamento e violência simbólica pelo qual sempre passaram as línguas indígenas, africanas e de imigração no Brasil.

 

Como se nota, há, até aqui, como não poderia deixar de ser, muitas perguntas a serem feitas e muitas respostas a serem dadas em relação à história sociopolítica das línguas do Brasil. Quem se interessar por essa área pode, produtivamente, fazer heterodoxos entre linguística histórica, história, análise do discurso, políticas linguísticas, sociologia etc. Pode, ainda, e deve – porque somos linguistas, afinal – estudar o que de fato constitui internamente a espinha dorsal do português brasileiro, à luz de uma comparação com outras línguas afetadas pelo massivo contato entre línguas.

Mãos à obra!

 

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, P. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989. 

FARACO, C. A. História sociopolítica da língua portuguesa. São Paulo: Parábola editorial, 2016.

HOUAISS, A. O português do Brasil. Rio de Janeiro: UNIBRADE/UNESCO, 1985.

LUCCHESI, D. Língua e sociedade partidas: a polarização sociolinguística do Brasil. São Paulo: Contexto, 2015.

MATTOS E SILVA, R. V. Caminhos da linguística histórica: ouvir o inaudível. São Paulo: Parábola, 2008.

MATTOS E SILVA, R. V. Ensaios para uma sócio-história do português brasileiro. São Paulo: Parábola editorial, 2004.

MÜLLER DE OLIVEIRA, G. Brasileiro fala português: monolinguismo e preconceito linguístico. In: MOURA E SILVA (Org.). O direito à fala: a questão do preconceito linguístico. Florianópolis: Editora Insular, 2000. p. 127-136

MUSSA, A. O papel das línguas africanas na história do português do Brasil. Dissertação (Mestrado em Língua Portuguesa) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1992.

ORLANDI, E. Processo de descolonização linguística: as representações da língua nacional. In: GALVES, C.; GARMES, H.; RIBEIRO, F. R. África – Brasil: Caminhos da língua portuguesa. Campinas: Editora da Unicamp, 2009, p. 211-223.

SHARPE, J. A história vista de baixo. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora da UNESP, 1992. p. 39-62.

SILVA NETO, S da. Introdução ao estudo da língua portuguesa no Brasil. Rio de Janeiro: INL, 1963 [1950].