Língua Portuguesa e humor. Outra vez!

Quem se comunica não intimida

 

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Tem um tempinho que vejo circular no Facebook uma série de vídeos “humorísticos”, “estrelados” pela comediante Marcela Tavares. Achei que eles fossem morrer com o tempo, mas as pessoas insistem em propagá-los. Se você já compartilhou, eu o convido a ler meu post. Quero convencê-lo a não propagar esses vídeos.

 

Na tentativa de criar humor, a moça do vídeo aponta – aos gritos – erros comuns no uso da norma-padrão da língua portuguesa. Mostra-se indignada e acusa de burras as pessoas que cometem o desvio. Acredita a moça que, por supostamente conhecer a norma culta, está autorizada a gritar e desrespeitar alguém que não fale como ela.

 

Os exemplos usados no vídeo estão associados ao uso corriqueiro da língua por pessoas que geralmente não tiveram acesso ao ensino regular ou que, mesmo tendo acesso, pelo baixo grau de proximidade com a cultura escolar, sofreram na escola processos de marginalização. Essas pessoas carregam na fala os marcadores de sua origem social ou regional: o desvio da norma-padrão da língua.

 

Nos vídeos que as pessoas compartilham às gargalhadas, sequer se questiona que o uso apontado como “correto”, em realidade, é apenas uma das formas de uso da língua, localizado no espaço geográfico e na história. Ignorar isso é certamente um passo para o uso menos competente da língua.

 

O principal objetivo da língua é a comunicação. E comunicar-se requer que não intimidemos o nosso interlocutor. O uso excessivamente formal do português, também usado como marcador de origem de classe, por um lado, pode dificultar a compreensão por desconhecimento da norma-padrão e, por outro, pode simplesmente intimidar por deixar clara a diferença de origens sociais dos falantes. Assim, um usuário competente da língua portuguesa, imbuído de boa-fé na comunicação, saberá que, por vezes, é adequado flexibilizar o uso da norma-padrão para se fazer entender e para aproximar seu interlocutor. E o que se faz no vídeo é o exato oposto: é a intimidação, a demarcação ostensiva de classe, a inferiorização de quem não tem acesso ao ensino formal e o reforço do preconceito linguístico.

 

Quem não segue a norma-padrão NÃO tem nenhum problema cognitivo

Por fim, a moça anuncia o vídeo com a hashtag #naosejaBURRO, como se houvesse qualquer conexão entre inteligência, habilidades comunicativas, capacidade cognitiva e conhecimento sobre a norma-padrão. Acredito profundamente que inteligência esteja associada à capacidade de enfrentar situações-problema e de apresentar hipóteses de solução viáveis. Acesso ao ensino regular e de qualidade é outra coisa completamente diferente. É uma questão social, que deveria ser direito, mas hoje é privilégio.

 

Agora, se você se considera um bom conhecedor das classes de palavras, das relações sintáticas e morfológicas da língua; se você está preocupado com o acesso das pessoas ao uso adequado da norma-padrão; se você acredita que elas percam oportunidades de estudo ou de trabalho em virtude de sua dificuldade no emprego da norma-padrão, sugiro que você ofereça a essas pessoas uma boa fonte de estudos que conheça. Mas, ao fazer isso, não desqualifique a vivência que ela possui na língua e, muito menos, não desqualifique a capacidade cognitiva e de aprendizagem dela como fazem esses vídeos. Ela simplesmente pode não ter tido o privilégio de acesso ao ensino formal e de qualidade como você.

 

 assista ao vídeo

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