IlustraBLOG-27-de-abril

 

*orbh-: quando o trabalho não dignifica

 

A proposta dos nossos textos é aproximar a etimologia da atualidade, retraçar os caminhos que as palavras seguiram através dos séculos para trazer luz e amparo ao presente. 

No dia 16 de março, quando termino a redação deste texto, cumpre-se um ano da suspensão das aulas presenciais na Universidade Federal do Paraná, onde eu trabalho. As reitoras e reitores de todas as universidades públicas do país tomaram a mesma decisão de forma praticamente simultânea. Uma medida inédita que só podemos entender à luz da crise sanitária produzida pela Covid-19 e a necessidade urgente de frear a expansão do vírus. Da noite para o dia, as docentes, alunas e demais membros da comunidade acadêmica ficaram órfãs do trabalho, que constituía parte importante de suas identidades e subjetividades, cegados, em certa medida, pela magnitude da crise. Lembrando agora aquele momento — à distância de um ano — e considerando a progressão da pandemia, decidi dar continuidade às postagens que venho publicando neste espaço da Parábola.

O dicionário da língua portuguesa apresenta duas definições para o termo órfão. Ele qualifica a pessoa que perdeu a mãe e/ou o pai, assim como, em sentido figurado, quem foi abandonado ou privado de algo, alguém que está desprotegido, desprovido ou desamparado — um sentimento que se estendeu junto à doença. Ao adjetivo órfão, podemos acrescentar o sufixo derivativo -dade para formar orfandade como condição dos órfãos. A palavra procede do étimo grego ορφανός — literalmente “privado”, “carente” —, adotado pelo latim na forma orphanus, passando depois para todas as línguas românicas: português órfão, galego orfo, espanhol huérfano, catalão orfe, occitano orfanèl, francês orphelin, italiano orfano, romeno orfan e, ainda, inglês orphan.   

A palavra latina orbus, cognato do grego ορφανός, possui o mesmo significado de carente e privado. Todavia, naquela língua, o termo tomou o sentido específico de ficar privado da vista (e não dos progenitores). Ainda hoje o catalão e o romeno usam o vocábulo orb para indicar “cego”Também o italiano tem orbo que pode significar tanto “órfão” como “cego”, embora seu uso seja pouco comum. Mas o termo latino não legou continuadores em português, espanhol nem francês; podemos dizer que essas línguas ficaram órfãs desse étimo no seu processo de formação histórica. Na atualidade, elas usam outros vocábulos: português cego e espanhol ciego (procedentes de caecus), francês aveugle (<ab oculis, literalmente “sem olhos”). Seria interessante estudar a etimologia desses outros termos e talvez possamos fazê-lo no futuro, mas o nosso objetivo presente é debulhar a espiga de *orbh-, que reúne o grego orphanos e o latim orbus.

Como fizemos em outras ocasiões, convidamos nossos leitores e leitoras a mergulhar além das fontes documentadas para encontrar a nascente da raiz indo-europeia. Para tanto, contamos com o recurso do dicionário etimológico, que apresenta os cognatos de outros ramos da família indo-europeia (disponível em: www.etymonline.com/word/orphan acesso em 16 mar. 2020). Assim, *orbh- deu origem em antigo eslavo eclesiástico a рабу, transliterado em alfabeto latino: rabu “servo, privado de liberdade”, e работа, transliterado rabota “servidão”. O tcheco faz parte do ramo ocidental das línguas eslavas. Neste idioma, o étimo produziu robota “trabalho forçado, serviço enfadonho” e robotnik “trabalhador forçado, escravo”. O escritor tcheco Karel Čapek (1890-1938) imaginou para uma peça de teatro uma espécie de humanos artificiais fabricados em massa pela companhia R.U.R., que seriam trabalhadores eficientes e privados de emoções. Josef Čapek, irmão do escritor, lhe sugeriu que batizasse esses androides com o nome de “robot”, cunhado por ele mesmo a partir de robotnik. A peça resultante — R.U.R. Rossumovi univerzální roboti — estreou em Praga em 25 de janeiro de 1921, faz exatamente cem anos! E a tradução de Paul Selver para a língua inglesa — R.U.R. Rossum's Universal Robots — chegou aos teatros da Broadway em 1921, onde atingiu um sucesso imediato. Desde a obra de Čapek, a velha raiz indo-europeia, entraria em inúmeras línguas, se tornando um internacionalismo: robot (aportuguesado em robô).

Pulando agora do galho das línguas eslavas para o das línguas germânicas, *orbh- também continua vigente nelas em formas como o alemão Arbeit “trabalho”. Essa palavra faz-nos lembrar tristemente dos portões de entrada aos campos de extermínio nazistas, onde se via esulpida, em total ignomínia, a frase: Arbeit macht frei  “o trabalho liberta”. Os autores dessa deturpada frase desconheciam seguramente a etimologia da palavra e provavelmente também a desconheciam os prisioneiros que seriam torturados até a morte naquelas sucursais do inferno. Qual liberdade poderia vir de uma raiz associada, desde a noite dos tempos, à perda, à privação, à carência e à servidão? 

Existe um longo debate sobre a natureza do trabalho como elemento dignificador do ser humano ou como fonte de alienação. Dessa discussão, participaram filósofos como Karl Marx e Georg Lukács, o ator Charles Chaplin — com filmes como Tempos Modernos  (1936) — e também as feministas da década de 1970, como Carol Hanisch, que popularizou o slogan “o pessoal é político”. O artigo 23 da Declaração Universal dos Direitos Humanos reconhece o direito à livre escolha de emprego com condições justas e favoráveis de trabalho e proteção. Esse mesmo artigo sanciona o direito a uma remuneração satisfatória, que garanta uma existência digna e equitativa, sem qualquer distinção. Igualmente advoga pela formação de sindicatos para proteger os direitos e interesses das trabalhadoras. Contudo, a natureza do trabalho que acontece a cada dia em nossa sociedade dista muito dessa formulação.

Durante a pandemia, vimos aumentar o desemprego e a informalidade no mundo inteiro. Muitas pessoas desempregadas viraram da noite para o dia entregadores e motoristas cadastrados em aplicativos que não pagam impostos. A classe trabalhadora tentando se equilibrar sobre uma bicicleta alugada, com o logo de um banco, e carregando nas costas o pesado fardo de uma mochila, também alugada, com o logo de um aplicativo de entrega de comida a domicílio. Atos reflexos de sobrevivência. Em seguida esses entregadores, despossuídos de qualquer tipo de direitos trabalhistas, começaram a se organizar e vêm convocando paralisações e greves. Outro capítulo importante sobre a precarização do trabalho é o das mulheres responsáveis pelos cuidados. Empregadas domésticas, faxineiras, pessoal sanitário e donas de casa que viram sua condição fragilizada até a exaustão física e psicológica. Numa zona rural de Minas Gerais, Madalena Gordiano foi explorada desde os seus 8 anos até os 46 por uma família que a mantinha em condição de cárcere privado e só conseguiu se libertar dessa situação quando auditores fiscais do trabalho a encontraram em dezembro de 2020. Certamente este não é um caso isolado. Vale lembrar que o Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão e que, em 1º de janeiro de 2019, logo após assumir a presidência, Jair Bolsonaro decidiu acabar com 89 anos de existência do Ministério do Trabalho. 

Também as professoras e professores vimos nossas condições de trabalho precarizadas durante a pandemia, afastadas do contato direto com as alunas, fomos obrigadas a reinventar nossa profissão desde as limitações tecnológicas, espaciais e de convivência de nossos lares. Por sua vez, as e os estudantes enfrentaram situações análogas e dificuldades sem precedentes para continuar sua formação. Uma tarefa comparável ao mito grego de Sísifo, condenado a carregar uma pedra até o cume de uma montanha eternamente, pois, ao chegar no pico da rocha, a pedra caía de novo pela outra ladeira. Assim, o filósofo franco-argelino Albert Camus narrou a lenda, num ensaio de 1947, onde refletia sobre o absurdo da existência. It’s the terror of knowing/What this world is about (É o terror de saber/em que consiste esse mundo) cantava o grupo Queen em colaboração com David Bowie no single Under Pressure em plena década de 1980, na crista da onda do neoliberalismo dos governos britânico, com Margaret Thatcher, e estadunidense, com Ronald Reagan. Hoje continuamos vivendo sob essa pressão, talvez mais do que nunca.

Faz-se necessário sair dessa condição de orfandade em que ficamos, trazer para o centro da discussão a linguagem para repensar os termos com os quais enunciamos o mundo. Mikhail Bakhtin (1895-1975) aborda a construção do sujeito humano, do sentido e da ética através das lentes da filosofia, da linguagem e da literatura. Convidamos à leitura minuciosa de suas obras como uma tarefa serena que estabelece diálogos, aumenta nosso conhecimento e desenvolve nossa criatividade. Em síntese, um trabalho que nos dignifica. Muito provavelmente, este texto sairá publicado em datas próximas do 1º de maio, Dia Internacional dos e das Trabalhadores/as. Devemos então lembrar que, na peça de Karel Čapek, os robôs se rebelam contra seus exploradores. A robô Helena e o robô Primus descobrem o amor, abrindo assim um caminho para a esperança.