LEITURA É RESISTÊNCIA

 

Estive em Belo Horizonte, nos dias 15 e 16 de outubro de 2018, convidado por Ana Elisa Ribeiro, para conversar e fazer uma oficina de leitura durante a 6ª Festa de Linguagens e Ciência [FLIC], evento promovido na Semana Nacional de Ciência e Tecnologia pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens do CEFET-MG. Vocês nem imaginam. Deparei com uma escola federal de ensino técnico fundada em 1910, com onze campi espalhados por todas as Minas Gerais com atuação institucional em três níveis [ensino médio, graduação e pós-graduação] em muitas áreas técnicas, mas não apenas, porque as áreas de Estudos da Linguagem e a de Pedagogia dão ao caráter predominantemente técnico da instituição como um todo o sopro quente das humanidades. 

 

A FLIC, evento interno e simultaneamente aberto [a desejada contrapartida social de todo investimento público], dedicada a temas como tecnologia, jornalismo, linguagem, edição, literatura, arte e vida acadêmica, estava aberta, na mesma oficina, a pós-graduandos, graduandos e estudantes do nível médio, uma experiência comovente. A oficina que ofereci ["Minha história com a leitura – Livros e resistência"] recebeu majoritariamente um grupo de estudantes, em torno dos 16 anos, do curso técnico de Hospedagem, uma turma que me encheu o coração de um vermelho sanguíneo nesses dias cinza. Aquelas meninas e meninos são leitores de um vigor tão evidente, capaz de fazer arder um coração já, às vezes, cansado, porque elas e eles vibram com a leitura, tanto que foram atraída[o]s para uma oficina sobre isso e têm histórias de vida com a leitura que justificam, neste momento, a gente pensar na urgência mais premente de nos unir em torno da escola pública gratuita e de qualidade e gritar:

 

“Aqui vocês não mexerão.”

 

Ao lado desses estudantes adolescentes, havia ainda graduandas e pós-graduandas, uma mãe formadora das próprias filhas como leitoras, uma psicopedagoga que lança mão da leitura para trabalhar com autistas… Um universo só possível sob a sombra certamente não perfeita, mas inegavelmente fecunda de uma instituição pública federal de ensino espalhada em onze, ONZE, centros de ensino que acolhem dezenas de milhares de estudantes em Minas. 

 

Imaginem o que essa instituição não terá feito em termos de formação e promoção humana no decorrer de sua existência centenária. Voltei de lá tomado pela necessidade de seguir colaborando, falando e agindo na defesa intransigente da escola pública de qualidade, tal como a vejo no CEFET-MG, na UFMG [cujo curso de Letras celebrou ainda ontem mesmo 50 anos], no Colégio Técnico de Floriano, PI [menina de meus olhos míopes, mas capazes de brilhar a cada encontro com aquelas meninas e meninos escrevendo e lendo e se posicionando no mundo].

 

Por ser do CEFET-MG, por ser a “Festa de Ana Elisa” [como brincam os professores colegas dela, mas, na verdade, a Festa é fruto de um coletivo generoso], por ser aberta à comunidade, a 6ª FLIC, em suas palestras, debates, oficinas e minicursos, me deu ideia do que pode ser educação pública, educação séria, educação feita por gente apaixonada por formação e promoção do melhor nas pessoas: sua capacidade de aprender, ao mesmo tempo, uma atividade profissional sem perder a necessidade de buscar o norte da identidade, da autonomia e da construção do pensamento crítico.

 

É simplesmente tudo isso que não podemos perder, que temos de defender contra todo e qualquer movimento neoliberal inclinado a dispensar, a invalidar a dedicação, a ética, a competência [mais que provada] das professoras e dos professores das escolas públicas. 

 

Obviamente, sei: a maior parte de nossas escolas não se compara às escolas federais. Por isso mesmo é que o lema é “escola pública de qualidade para todos em todos os níveis como função constitucional do Estado brasileiro”. O objetivo é fazer da educação a mais permanente política de Estado, não dos governos [que têm de passar, que têm de se suceder…], enquanto a educação, da creche à universidade, tem de ser compromisso do Estado  brasileiro permanente, incessante, com seus cidadãos e cidadãs.

 

Ter estado no CEFET-MG no campus 1, em Belo Horizonte, e dali enxergar todos os onze campi, acolhendo estudantes pela capital e pelos interiores mineiros me faz ver todo o imensurável potencial, todo o possível alcance da educação pública e desejar que muitos de nós, da maneira que nos seja possível, nos empenhemos na defesa da escola pública em todos os níveis [porque já se ouvem trovões e já se veem relâmpagos neoliberalizantes sobre nossa ainda insuficiente e, em muitos pontos, ineficiente rede de ensino].

 

Juntemo-nos para defender a escola e seus profissionais, vamos aderir à inclusão escolar incessante, pensar em estratégias de vencer a evasão, advogar pelas cotas como única estratégia capaz de concretizar o resgate histórico de uma dívida étnico-social que corre o risco de ser desconsiderada. É preciso pensar a educação não como produto, mas como processo longo, por vezes árduo, mas inescapável. Na ausência de uma educação encarada como processo, como investimento nos recursos humanos, seremos sempre inexpressivos em política, economia, ciência, tecnologia, seremos sempre uma regressiva república de bananas fáceis de enganar com o discurso raso de quem não leu o bastante. E assim não teremos aquela menina do CEFET-MG, aluna do curso técnico de Hospedagem, que descobre na biblioteca do avô todo um patrimônio literário que ela assume como herança. Ou a bibliotecária que espalha pela casa toda todos os tipos de livros [sem pudor]  para que suas filhas aprendam a escolher o que leem. Não teremos o menino que, de repente, decide: preciso voltar aos livros, tenho investido muito tempo no fragmentário das redes. É preciso fazer mergulhos fundos ao lado de sobrevoos para ter visão mais profunda do conjunto. Sem falar na psicopedagoga que canta com a aluna autista e se socorre da leitura para promover a inclusão na vida via inclusão escolar.

 

Sim, leitura é resistência: humana, cultural, política. Só no grande patrimônio consignado nos livros [seja em papel, em arquivo eletrônico, em streaming], encontraremos modos de resistir, unidos, contra o raso da fórmula: “Eu serei o seu guia”, contra a palavra de ordem pavloviana que tenta nos fazer salivar sem pensar,  contra a rendição a toda autoridade que se vista de falsos argumentos religioso-morais para ocultar o próprio limite, a própria inevitável  falha. Só a leitura nos fará ter a força necessária para exigir que a educação regular não seja rebaixada a produto submetido à oferta e à procura, tudo a distância. Educação é semelhante a alimento, a água, a todo bem essencial do qual não podemos abdicar, sob risco de nos perder a nós mesmos para ser massa descerebrada de manobra dos espertos em campanha pelos postos de mando.