ingedore

INGEDORE KOCH in memoriam

 

 

Uma das coisas bacanas da semana que passou foi poder homenagear a Inge no evento de Linguística de Texto no Abralin em Cena, em Teresina, no Piauí. Segue abaixo o texto que escrevi para a ocasião: 

 

Homenagear Ingedore sempre foi, é e continuará sendo uma honra e uma alegria para mim. Fiz isso algumas outras vezes, com muitos outros amigos e colegas. Mas hoje é diferente.

 

Inge, como era conhecida entre nós, fez a passagem deste plano para um outro (como ela acreditava) na tarde de 15 de maio, na semana passada. Ela partiu de forma rápida e inesperada, para nossa tristeza, mas, com certeza, para sua alegria, porque ela gostava de chegar logo aos destinos que se lhe colocavam no caminho. Era o dia do aniversário de seu querido amigo Marcuschi, que, com toda a certeza, deu-lhe as boas-vindas.

 

“Partiu de forma rápida e inesperada, para nossa tristeza, mas, com certeza, para sua alegria, porque gostava de chegar logo aos destinos que se lhe colocavam no caminho. Era o dia do aniversário de seu querido amigo Marcuschi, que, com toda a certeza, deu-lhe as boas-vindas.”

 

Enquanto muitos de nós batalham uma vida inteira para alcançar algum reconhecimento de nosso trabalho, Inge, graças a sua inteligência extraordinária e a sua total atenção ao que lhe interessava em termos intelectuais e científicos, alcançou, em tempo recorde, para sua produção e para sua obra, níveis altos de interesse e dedicação por parte do público leitor de nossa área (constituído por professores, pesquisadores e estudantes de graduação e de pós-graduação do campo de estudos da linguagem), mas também de profissionais e pesquisadores de outros campos de estudos que se interessam pela complexidade e pela beleza do fenômeno textual. Com sua linguagem clara e objetiva, ela falou aos corações e mentes de muitos daqueles que sempre quiseram “desvendar os segredos do texto”.

 

“Com sua linguagem clara e objetiva, ela falou aos corações e mentes de muitos daqueles que sempre quiseram desvendar os segredos do texto.”

 

Ela os desvendou para todos nós e fez muito mais. Ela nos fez ficar apaixonados por esse objeto. Ela nos fez querer saber mais e mais, a ponto de ter sido uma das principais responsáveis pela consolidação da área nos diversos cursos de pós-graduação do Brasil. No Brasil e no exterior, ela foi convidada inúmeras vezes para dar cursos, seminários, palestras, e sempre ia, com enorme alegria, se transformando e transformando a todos por onde passava.

 

São tantas as histórias que muitos de nós tivemos com ela. São histórias profundas, que nos marcam pela beleza da experiência com o conhecimento sobre a linguagem que ela, Inge, mediava de forma sempre sincera, generosa e precisa. Uma dessas histórias é contada pelo professor Marcuschi, no texto que escreveu para os Cadernos de Estudos Linguísticos em homenagem a ela, no contexto de sua aposentadoria da UNICAMP, organizado por Edwiges Morato, por mim e por Maria Luiza Cunha Lima, em 2003, há 15 anos:

 

Meu contato com a história (de Ingedore) começa vinte antes, quando aprendi a conhecê-la no início dos anos oitenta, no Departamento de Português da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Foi uma agradável descoberta para mim encontrar ali uma interlocutora com os mesmos interesses e que se tornaria uma grande amiga. Surpreendente naquele momento foi conhecer alguém que dominava com perfeição o idioma alemão, o que lhe dava a imensa vantagem de trazer para o nosso meio linguístico ideias de autores desconhecidos por brasileiros. Lia e citava já naquele tempo os trabalhos de Roland Harweg, Elizabeth Gülich, Harald Weinrich, Paul Hartmann e muitos outros ignorados por aqui. Desde então, não paramos de interagir, seja em intensa correspondência pessoal, projetos de pesquisa conjuntos, mesas-redondas em congressos, bancas examinadoras, cursos em parceria e trabalhos produzidos em coautoria. Isto me deu o privilégio de conhecer mais de perto esta notável figura humana em todos os sentidos.
Naquele início dos anos oitenta, eu pouco conhecia da situação dos estudos linguísticos no Brasil e não sabia onde a professora e pesquisadora Ingedore Koch poderia ser situada nesse contexto. Contudo, não foi difícil localizá-la, sobretudo quando vi sua tese de doutorado sobre a argumentação inserida na linha da linguística da enunciação, saindo do enquadre tipicamente formal. Mais preciso ainda se tornou esse enquadre teórico original quando tomei contato com seus trabalhos em linguística de texto que viriam a ser uma referência obrigatória. Aquele trabalho naquele contexto não foi fácil, pois ali estava um momento particularmente difícil para esse tipo de investigação. O gerativismo andava na crista da onda e as linhas de trabalho ditas “discursivas” não eram bem vistas. Foi da qualidade do trabalho, aliada à intensidade das investigações relacionadas ao ensino de língua, que resultou uma perspectiva teórica hoje madura e influente na renovação dos critérios, categorias e propostas de pesquisa e ensino da língua. O papel de incentivadora que Ingedore Koch teve e ainda tem nesse complexo processo de reordenamento teórico em âmbito nacional é não apenas indiscutível, mas visível na sua presença como mentora e teórica de primeira água.

 

Inge foi sempre generosa e firme com seus orientandos. Às vezes, impaciente, mas porque não tinha tempo a perder. Queria ir em frente. Isso pode se aplicar a cada um de nós que trabalhamos com ela, que convivemos com ela a partir de seus ensinamentos e postulações. Tantos sonhos juntos, tanto trabalho conjunto, tantas boas ideias desenvolvidas e concretizadas, tanta reflexão sobre o texto e suas artimanhas narrativas e argumentativas.

 

Inge foi sempre generosa e firme com seus orientandos. Às vezes, impaciente, mas porque não tinha tempo a perder. Queria ir em frente.”

 

Inge estava sempre inovando, buscando aprimorar sua maneira de ver o fenômeno textual. Para mim, sua obra foi marcada por diversas “viradas”, tema do qual ela também tratou em seus livros monográficos. Vou falar de uma delas, a que considero mais importante: a publicação de seu livro Desvendando os segredos do texto. Nele, Inge revela como passa a ter um pensamento original que se destaca e distancia da compreensão de Halliday e dos estudiosos alemães do fenômeno textual. Ao eleger a ideia de “progressão”, a referencial e a textual, como modos fundamentais de estruturação dos textos, Koch enfatiza que, mesmo dentro dos limites físicos de um texto, o que há é sempre processo, atividade, agência, sociocognição, enfim.

 

Como disse no início, fizemos inúmeras homenagens a ela ao longo desses 15 anos por meio de publicações e eventos, demonstrando o nosso carinho pela mestra ao mesmo tempo rigorosa e generosa, sempre alegre e preocupada com nossos destinos, como orientandos, como colegas, como amigos.

 

Nesse último livro de homenagem a Inge, em vida, organizado por seus últimos três orientandos, Edson RosaEduardo Penhavel Marcos Cintra, há depoimentos de colegas e amigos mais próximos, seus companheiros de viagem. Os depoimentos de Clélia Jubran (in memoriam) e de Ataliba de Castilho enfocam o papel de liderança que Inge teve na incorporação do texto como objeto de estudo em uma gramática de referência a partir de uma perspectiva textual-interativa. Já o professor Travaria enfatizou a trajetória percorrida por Inge na companhia de colegas e amigos para a consolidação dos estudos do texto no Brasil.

 

Por fim, seus amigos próximos, com quem ajudou a fundar a ALED – Marcuschi como sócio número 1 e Ingedore como sócia número 2 – Teun Van DijkAdriana Bolívar, produziram artigos que tematizam as pontes interdisciplinares que a obra de Koch ajudou a construir.

 

Que bom que posso fazer essa homenagem a ela em um evento que celebra as interfaces da disciplina que ela ajudou a criar e consolidar nos cursos de graduação e pós-graduação do Brasil.

 

Que bom que essa homenagem é feita aqui, na região nordeste, que ela adorava e onde sonhava morar depois de aposentada... Inge adorava o calor (do clima e o humano) daqui. Adorava o mar e o sol. Gostava demais de todas as capitais do nordeste, mas tinha suas predileções. Fortaleza era para onde sempre queria voltar. Na Federal do Ceará, tinha sua casa acadêmica do coração, a casa das interlocuções afetivas e intelectuais com Maria Elias e, especialmente, com Mônica Cavalcante.

 

Que bom que essa homenagem é feita aqui, na região nordeste, que ela adorava e onde sonhava morar depois de aposentada... Inge adorava o calor (do clima e o humano) daqui. Adorava o mar e o sol.”

 

Mas Inge era uma mulher do mundo. Soube dar sentido a sua vida pessoal e intelectual de forma corajosa. Foi uma mulher à frente do seu tempo, que sempre enfrentou as hegemonias de toda natureza de maneira discreta, mas firme. Foi uma petista de coração, uma são paulina ferrenha. Nos últimos tempos, tinha saudades da Unicamp, tinha saudades da PUC-SP, tinha saudades das suas viagens e de escrever seus textos. Há 28 dias, exatamente, deu autógrafos e estava muito feliz por voltar à cena, por voltar a despertar aquela boa energia em nós, aquela que nos faz buscar mais conhecimento, aquela que dá sentido às nossas vidas como profissionais da linguagem que somos.

 

Foi uma mulher à frente do seu tempo, que sempre enfrentou as hegemonias de toda natureza de maneira discreta, mas firme. Foi uma petista de coração, uma são paulina ferrenha.”

 

O que é homenagear? É, a meu ver, reconhecer o bem (social e individual) que alguém fez. Esse reconhecimento veio de várias formas, ao longo de sua vida. Ela recebeu diversas homenagens em forma de publicações, medalhas de honra ao mérito e títulos (foi escolhida para ser uma das Pesquisadoras Eméritas do CNPq). Mais do que isso: ela foi e continua sendo reverenciada por todos os seus ex-alunos e pela comunidade acadêmica da área de Letras Linguística.

 

Inge nos fez muito bem. Em tempos de tantas intolerâncias e não reconhecimentos, fazer esta homenagem nos faz bem. Até o fim, Inge nos faz dar o melhor de nós. Ingedore motivou e continuará motivando o crescimento intelectual daqueles que entraram e entrarão em contato com sua obra, porque ela, Inge, materializou e continuará materializando tanto a vocação democrática como a sensibilidade intelectual de quem produz um tipo de saber marcado por uma extraordinária inteligência e uma abertura para o outro.

 

Inge, materializou e continuará materializando tanto a vocação democrática como a sensibilidade intelectual de quem produz um tipo de saber marcado por uma extraordinária inteligência e uma abertura para o outro.”

 

Sigamos assim, apreendendo com ela, reconhecendo que a celebração de sua vida e de sua obra foi e continuará sendo uma celebração de nossos conhecimentos e afetos sobre a linguagem, sobre o texto, e sobre, enfim, nossas próprias vidas.

 

Teresina, 22 de maio de 2018.

Anna Christina Bentes