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Marcos Bagno

 

Resisti um pouco a falar do tal dia mundial da língua portuguesa, até porque esse tipo de ufanismo em torno da língua me dá sonolência (antes me dava irritação, mas com a idade a gente se poupa de sofrer mais que o necessário). Sugiro enfaticamente a leitura do texto do português Nuno Pacheco (https://www.publico.pt/2020/05/07/culturaipsilon/opiniao/lingua-portuguesa-so-sabem-sonho-inquietacao-inquietacao-1915353?fbclid=IwAR1prNiIudoYLzSuveQx7Y7cR7STgpCETgudX3vAi_nfcKRIy6eqoi1delc), que joga o devido balde de água fria nesse oba-oba balofo. O português, de todas as línguas europeias que serviram de veículo para a colonização, a espoliação, o genocídio e a escravização de outros povos durante séculos, é a que tem menos instrumentos linguísticos a seu dispor para uma divulgação efetiva e para o ensino como língua segunda. Inglês, francês e espanhol dispõem de uma riquíssima produção de dicionários (de todos os tamanhos, tipos, formatos e cores; para os mais diferentes públicos-alvo), de livros didáticos para o ensino da língua, muitos produzidos por órgãos governamentais dedicados a isso. O que existe em português, especialmente o português brasileiro, é muito pouco e muito ruim. Das ex-colônias portuguesas, só o Brasil não encabeça a lista dos países mais pobres do mundo, a maioria deles dependentes da ajuda internacional para sobreviver. Nesses países, como bem se sabe (e o ufanismo tenta esconder), o português é língua oficial, sim, mas minoritária e reservada às reduzidíssimas elites nacionais que têm acesso à educação formal. Portanto, essas estatísticas glorificantes que dizem que o português é "falado" em todos os continentes por 250 milhões de pessoas têm de ser olhadas com muita desconfiança: quantas pessoas na África realmente têm plena competência no uso da língua do ex-colonizador? O Brasil sozinho tem 210 milhões desses falantes, de modo que se todas as pessoas no resto do planeta que falam português trocassem de língua, ainda assim o português seria uma das línguas mais faladas do mundo. Só na área metropolitana de São Paulo existe o dobro de falantes que em Portugal inteiro. Mesmo tão grande e tão populoso, o Brasil, em qualquer foro internacional, é só um: em qualquer votação ou deliberação, a simples presença de pequenos países de língua espanhola como Panamá, Costa Rica, Honduras, El Salvador e Cuba já constituiria uma derrota para a reivindicação do português como língua "internacional". Por sua vez, em termos de política linguística, Portugal tem muito mais a dizer a esse respeito do que nós: basta lembrar a existência do Instituto Camões em contraposição a… nada parecido no Brasil. Portugal mantém diversas cátedras e leitorados mundo afora, enquanto os escassos leitorados brasileiros vão se tornando cada vez mais raros. Agora então que as relações exteriores do Brasil, assim como o ministério da educação (ou contra a educação) estão nas mãos de psicopatas de manual, o quadro só tende a piorar. Quanto ao Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP), como bem lembra Nuno Ramos, serve para nada e não serve para coisa alguma. Por isso sempre tenho dito que a tal da lusofonia é de fato uma "ilusofonia". Muito discurso vazio, muita retórica saudosista, mas nenhum reconhecimento da realidade distópica em que vive a imensa maioria das populações de países que têm o português como língua oficial — só mesmo Portugal apresenta índices de desenvolvimento humanos decentes, enquanto o Brasil, nunca é demais repetir, é um dos países mais covardemente injustos e desiguais do universo conhecido e desconhecido. E agora que é chefiado por uma criatura que reúne em si tudo o que pode haver de pior na espécie humana, uma aberração genética que deveria estar trancafiada numa jaula para servir de cobaia a experimentos científicos, as perspectivas de divulgação da língua são tão sombrias quanto a certeza de que nem os bisnetos dos nossos bisnetos viverão num país minimamente civilizado, em que um jovem negro não seja assassinado a cada 27 minutos ou uma mulher a cada hora e meia. O capitalismo hipersuperultraliberal vai destruindo o planeta a passos rápidos, e a atual pandemia provocada pelo novo coronavírus é a prova mais letal de que a incensada globalização só tem servido para internacionalizar as mazelas e para que um único homem, o dono da amazon.com, tenha em sua conta bancária mais dinheiro que os PIBs reunidos de vários países. No que diz respeito ao ensino do português brasileiro no exterior, o justificado horror que o cenário político (ou apocapolítico) do Brasil desperta na comunidade internacional — e mais gravemente neste exato momento, com um presidente que se vangloria de sua necropolítica e persegue quem tenta combater o genocídio que ele põe em marcha — vai fazendo murchar o já pequeno interesse pela nossa língua. O português, infelizmente, é uma língua em que milhões de pessoas, nas mais diferentes partes do mundo, travam uma luta sem trégua para estarem vivas no dia seguinte. Enquanto for essa a realidade das e dos falantes de português, não vejo nada que justifique uma celebração mundial da língua. E é fácil imaginar a dor que isso causa em alguém que vem dedicando à língua a vida que já foi e a pouca que lhe resta.