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A narrativa dos progressos científicos precisa ser periodicamente reavaliada, criticada e, se for o caso, refeita. Afinal, como diz o provérbio, quem conta um conto aumenta um ponto, e esse ponto vem sempre desenhado pela inescapável ideologia. E foi bem isso o que aconteceu na virada do século 19 para o 20. E, ao contrário do clássico de Marx e Engels, A ideologia alemã, aqui vamos falar de uma ideologia antialemã.

Em 1864, a Prússia (ancestral da Alemanha) promoveu uma guerra contra a Dinamarca, da qual saiu vitoriosa. Em 1866, venceu a Áustria em outra guerra. E em 1870-1871, foi a vez de combater a França, que se viu derrotada e humilhada com a ocupação de Paris. Mais adiante, a Alemanha, já unificada, promoveu a Primeira e, bem depois, a Segunda Guerra Mundial. Tudo isso fez surgir e crescer, na Europa ocidental, um forte sentimento antigermânico. Ora, o século 19 foi totalmente dominado, no campo dos estudos linguísticos, por estudiosos de língua alemã. Isso se deveu, em boa parte, ao desenvolvimento de um importante sistema universitário, que resultou na institucionalização de diversas áreas do conhecimento, entre elas a Sprachwissenschaft, “ciência da linguagem”, que em outros idiomas veio a se chamar linguística. Há exatos duzentos anos, em 1821, o grande pioneiro dos estudos histórico-comparatistas, Franz Bopp (1791-1867), se tornou o primeiro ocupante de uma cátedra de linguística numa instituição acadêmica, a recém-fundada Universidade de Berlim. Enquanto em outros países os intelectuais e cientistas tinham de se virar sozinhos para pesquisar e publicar seus trabalhos (pensemos, por exemplo, em Darwin, que nunca atuou numa universidade), em terras alemãs, a instituição universitária lhes garantia boas condições de trabalho e de subsistência. Assim, os nomes que brilharam na linguística do século 19 compõem uma lista quase toda de sobrenomes alemães: Schlegel (dois irmãos), BoppHumboldtSchleicherGrimm (dois irmãos), BenfeyPottMüllerSchuchardtOsthoffBrugmannCurtiusSieversPaul e por aí vai. Mesmo os não alemães que se destacaram nesse campo fizeram seus estudos na Alemanha, como o estadunidense William D. Whitney e, claro, o suíço Ferdinand de Saussure.

É fácil então levantar a hipótese (tão ideológica quanto qualquer outra) de que os estudiosos da linguagem, no início do século 20, queriam se desembaraçar do predomínio alemão, desejo que refletia o impregnado sentimento antigermânico que mencionei acima. Quando, em 1916, os alunos de Ferdinand de Saussure publicaram o Curso de linguística geral, aquele desejo pareceu milagrosamente satisfeito: quem melhor do que um recatado professor suíço (ou seja, da terra da “neutralidade”) de língua francesa para ser mitificado como o “pai da linguística moderna”, um pensador cuja (suposta) originalidade faria a linguística alemã do século anterior se tornar obsoleta e anacrônica da noite para o dia? Não admira que somente a partir da segunda edição do Curso, em 1922 (ou seja, no período entre as duas guerras mundiais), o livro que Saussure não escreveu tenha começado a ser visto como a bíblia da tal linguística moderna. E assim tem início a narrativa laudatória que até hoje todos escutamos (e reproduzimos) em nossas aulas de introdução à linguística de tantas e tantas universidades. No entanto...

No entanto, no subsolo do Curso de linguística geral se agitam, invisíveis, as verdadeiras fontes das teses apresentadas na obra como originais e inovadoras, fontes que, entretanto, nunca são mencionadas (o livro nem sequer traz uma bibliografia no final!). E uma das mais notáveis dessas fontes é a obra do linguista (surpresa!) alemão Hermann Paul (1846-1921), cujo centenário de morte se completa este ano. O livro que Paul, sim, escreveu e publicou em 1880, Prinzipien der Sprachgeschichte (“Princípios de história da língua”), foi, durante quarenta anos, a leitura obrigatória, o manual básico para qualquer pessoa que se aventurasse nos estudos linguísticos. Fosse para adotar a teoria ali exposta ou para rejeitá-la, a obra de Paul se tornou incontornável. O livro teve três edições posteriores (1886, 1898 e 1920), sempre com acréscimos e retificações, o que demonstra o desenvolvimento constante do pensamento do autor. 

Quando comparamos os Prinzipien de Paul com o Curso atribuído a Saussure, o que logo chama a atenção é a profundidade e a sofisticação das teses de Paul, que contrastam com a pobreza e a superficialidade de temas abordados no Curso. De fato, o Curso não vai além de uma linguística da palavra (o tal signo linguístico que, ao fim e ao cabo, a gente nunca sabe exatamente o que é), enquanto Paul dedica vários capítulos ao estudo da morfossintaxe, que é o núcleo duro do estudo do funcionamento das línguas humanas. A crítica textual acaba também por revelar, no Curso, um grande número de paráfrases, quando não de traduções literais do que aparece no livro de Paul publicado, é sempre bom lembrar, 36 anos antes. Vamos mostrar apenas algumas delas.

No livro de Paul, é possível ler o seguinte: “A partir da comparação dos organismos individuais da língua, pode-se obter uma certa média, em que se determina o que é realmente normal na língua, o uso geral”. Pois lá no Curso de linguística geral aparece: “Entre todos os indivíduos assim conectados pela linguagem se estabelecerá uma espécie de média. Paul escreveu: Toda criação linguística é obra de um único indivíduo”Saussure (não) escreveu: Todos os fenômenos evolutivos têm sua origem na esfera do indivíduo”Lemos nos Prinzipien: “Fornecer tal descrição de um estado de língua [...] não é, portanto, uma tarefa fácil e, em certas circunstâncias, uma tarefa muito difícil. Lemos no CursoÉ muito mais difícil fazer linguística estática do que histórica. [...] [A] linguística que se move entre valores e relações coexistentes apresenta dificuldades bem maiores”. Em Paul aparece: A atração mútua se baseia sempre numa correspondência parcial do som ou do sentido ou do som e, ao mesmo tempo, do sentido. Em Saussure (?) aparece: “Ora se tem comunidade dupla do sentido e da forma, ora somente comunidade de forma ou de sentido. Por fim, a famosa exclamação de Paul – “Abaixo todas as abstrações!” – reaparece no Curso como “não existe nada de abstrato na língua!”. Tem-se a impressão de que o Curso de linguística geral é uma espécie de “apostila” que resume, para fins didáticos, as teorias dos autores mais divulgados na época.

 

Além disso, as famosas dicotomias “saussurianas” (língua/fala, diacronia/sincronia, significante/significado, conceito/imagem acústica, relações paradigmáticas/relações associativas) se encontram todas nos Prinzipien de Paul, evidentemente com outros nomes. A célebre image accoustique atribuída a Saussure corresponde à Lautbild (“imagem sonora”) de Paul, assim como o Sprachusus corresponde à langue e a individuellen Sprechtätigkeit corresponde à paroleAs relações associativas e sintagmáticas (rapports associatifs et syntagmatiques) do Curso remetem (sem dar os créditos) aos conceitos de stoffliche und formale Gruppen (“grupos materiais e formais”), de Proportionengruppen (“grupos de proporção”) e syntaktischen Verbindungen (“conexões sintáticas”) e kombinatorische Tätigkeit (“atividade combinatória”). A ideia de que a língua é uma estrutura não aparece nem uma vez no livro que, veja só, os estruturalistas elegeriam como o suposto ponto de partida de suas teorias, ao passo que no livro de Paul essa conceitualização da língua é diversas vezes enunciada.

 

Na ciência, nada se faz ex novo nem ex nihilo, isto é, a partir do nada, graças a alguma iluminação repentina, a um “estalo” de genialidade ou como Minerva da cabeça de Júpiter (uma pitada de mitologia sempre dá um tom chique ao argumento, né?). A história da maçã que caiu na cabeça de Newton e assim fez ele “descobrir” a lei da gravidade é desmentida pelo próprio Newton que disse: “Se consegui ver mais adiante foi porque fiquei de pé sobre os ombros de gigantes”. A linguística é um campo de conhecimento que vem se construindo, na cultura ocidental, há mais de 2.500 anos. A tese da arbitrariedade do signo, por exemplo, é discutida por Platão, por seu discípulo Aristóteles, passa pelos estoicos, por santo Agostinho, por Dante Alighieri, atravessa os séculos, reaparece pelas mãos de Wilhelm von Humboldt na virada do século 18 para o 19, é retomada pelo estadunidense William D. Whitney (outra das fontes importantes do Curso de linguística geral nunca devidamente reconhecidas), de modo que não representa novidade alguma quando é enunciada por Saussure. 

 

Mas também não é o caso de querer substituir um “pai” por outro, de fazer um teste de DNA para cobrar pensão alimentícia. Hermann Paul foi, sim, um importante pioneiro da linguística moderna, mas seu livro principal é recheado de referências aos pensadores (devidamente nomeados) que contribuíram para a sua formação. Procurar “pais fundadores” de disciplinas científicas é negar a própria natureza do empreendimento científico. Ainda mais quando esses pais, como no caso de Saussure (que jamais aspirou a esse título nem tomou conhecimento de que lhe tivesse sido atribuído), parecem reproduzir, quase literalmente, as palavras dos avós.