Ensino de língua materna no Brasil

 

As práticas silenciadoras de ensino

ENTREVISTA COM CELSO FERRAREZI

 

 

PARÁBOLA: Em seu livro Pedagogia do silenciamento: a escola brasileira e o ensino língua materna, você fala do estranho silêncio das escolas. Que silêncio é esse?

 

FERRAREZI: Quando falamos em silêncio na escola, pensamos apenas no fato de que mandamos as crianças ficarem quietas nas aulas. Essa é uma forma ingênua de ver o silêncio nas escolas brasileiras. Na verdade, há um processo muito mais complexo de silenciamento, de submissão, de controle, que silencia a mente, as ações e, finalmente, a voz. Esse processo começa na escolha do que temos ensinado e se concretiza na seleção de métodos de ensino que privilegiam a repetição mnemônica das coisas em um profundo detrimento do raciocínio criativo e da imaginação.

 

PARÁBOLA: O que você chama de círculo vicioso do silêncio?

 

FERRAREZI: A prática do silenciamento é tão antiga nas escolas brasileiras que já temos gerações silenciadas formando gerações para o silêncio. São professores que não se dão conta do problema, perpetuando práticas e conteúdos silenciadores que malformarão novas gerações e assim sucessivamente, até que, um dia, o ciclo seja quebrado – se um dia for quebrado.

 

PARÁBOLA: Quando você fala em formação do professor, então, isso tem de começar ainda dentro da universidade? A universidade também precisa incorporar isso?

 

FERRAREZI: Tinhade ter começado nos antigos cursos Normais ou de Magistério de 2º grau que formavam os professores da educação fundamental, por cujas mãos nossa geração foi construída. Mas não começou. Eu fiz o Magistério e sei o quanto aqueles cursos eram silenciadores. Hoje, a formação dos professores está a cargo das universidades. Porém, em sua grande maioria, há uma dissonância abissal entre a realidade social, a prática da escola básica e a prática das universidades. É como se a escola básica e as universidades fossem independentes e não fizessem parte de um mesmo sistema educacional e como se ambas não tivessem compromisso algum com o mundo. É cada um por si, no seu próprio reino da fantasia. Esse “mundo da fantasia educacional” é o ambiente perfeito para se atuar na direção do silenciamento. Se as universidades não acordarem para esse problema e não buscarem uma sintonia com as escolas básicas e com o mundo, essa sintonia nunca acontecerá. As universidades são a única instituição educacional brasileira com autonomia suficiente para construir uma revolução; elas são o único caminho possível para uma “alforria da mente” na fase da educação básica. Se elas não fizerem nada, a escola básica, da forma como está atualmente organizada, não tem força para fazê-lo.

 

PARÁBOLA: Os PCN são os balizadores da educação no Brasil. Após analisá-los, a que conclusão você chega, com base nas quatro habilidades essenciais da comunicação: ouvir, falar, ler e escrever?

 

FERRAREZI:  Os PCN constituíram uma enorme revolução teórica na direção de alforriar as mentes dos alunos e libertá-las desse silenciamento generalizado e emburrecedor a que estão expostas hoje. Porém, eles simplesmente não emplacaram. Na verdade, toda a parte da Lei 9394/96 (LDB) que fala sobre a construção dos currículos não emplacou. Até hoje, os estados não criaram seus currículos mínimos, os municípios idem e as escolas menos ainda. A Lei diz claramente que cada estabelecimento escolar deve ter um currículo adaptado para a comunidade que atende. Alguns estados, como São Paulo e Minas Gerais, unificaram currículos em aberto desrespeito à lei federal. E o fizeram com currículos que desrespeitam abertamente os PCN. Ou seja: houve avanço legal mas, depois de dezessete anos, esse avanço ainda não saiu realmente do papel.

 

PARÁBOLA: Uma escola que favorece a pedagogia do silenciamento em sala de aula está formando que tipo de aluno?

 

FERRAREZI: As cicatrizes desse tipo de formação são muito complexas e difíceis de descrever sucintamente em uma resposta como esta. Mas, o que podemos ressaltar é que, no geral:

1. esse aluno tem enorme dificuldade com o raciocínio criativo e com a interpretação;

2. se comunica muito mal (seja lendo, escrevendo, ouvindo ou falando);

3. acredita piamente nas verdades monolíticas da escola sem questioná-las (por exemplo, ele acredita que Cabral descobriu o Brasil, que a princesa Isabel fez um grande favor aos escravos porque era uma boa moça e que só é inteligente a pessoa que tira nota boa em matemática, entre outras coisas estúpidas que a escola brasileira ensina);

4. acredita que a suprema virtude do homem é a “esperteza de pior tipo”, justamente o que ele usa para sobreviver no sistema distorcido da escola, e, assim, é a própria escola que o ensina a mentir, a furtar conhecimento alheio, a enganar os professores, a competir danosamente com os colegas e assim por diante...;

5. finalmente, ele acredita que estudar é ruim, porque a escola o ensinou que estudar é o castigo e o recreio é o prêmio. É só olhar bem um típico aluno de aproveitamento mediano de nossas escolas que compreendemos de imediato o que acontece com os meninos e meninas.

 

PARÁBOLA: Por fim, qual é a proposta da pedagogia da comunicação?

 

FERRAREZI: A pedagogia da comunicação não propõe nada novo ou mirabolante. Propõe apenas que o ensino básico precisa seguir o desenvolvimento psicogenético dos alunos e que as atividades precisam ser ministradas de acordo com as fases de desenvolvimento, com uma densidade de conteúdos menor e uma profundidade maior. Assim, nos cinco primeiros anos, cabe à escola o desenvolvimento profundo das competências comunicativas. A partir daí, o conhecimento técnico sobre a língua tem início, mas as competências de comunicação continuam sempre em voga. Isso exigirá uma mudança radical nos currículos atuais, com conteúdos mais adequados por fase e com muito menos conteúdo em cada ano, de maneira que o professor tenha o tempo de trabalhar profundamente – e de uma vez por todas – cada conteúdo, sem repetições enfadonhas e revisões intermináveis. Com essa reforma curricular realizada, os métodos precisarão se adequar ao novo currículo e a diversidade de inteligências precisará ser, finalmente, valorizada pela escola. Isso permitiria a cada aluno dar muito mais de si e, à escola, formar alunos leitores, com capacidade crítica e interpretativa, que soubessem se comunicar oralmente e por escrito, além de compreender profundamente o mundo.

 

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