Blog da Parábola Editorial

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Do trabalho infantil à leitura

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O Príncipe do Reino do Pé-de-Manga

Ferrarezi

Criança pobre no interior de São Paulo, fui apresentado ao trabalho infantil aos 5 anos. A vida não era fácil. De domingo a sexta-feira, estudava pela manhã, trabalhava à tarde na construção civil ou na enxada e, à noite, cuidava de uma horta caseira que nos ajudava a melhorar o arroz ou o macarrão, muitas vezes, o prato único do dia. Meu momento de descanso era o sábado à tarde, dia em que meus pais dormiam para se aliviar da semana, dia em que não havia ninguém para me mandar fazer algo, dia de subir no pé-de-manga.

A mangueira que havia no fundo de nosso quintal era meu lugar de paz. Nesses dias de paz, eu nela subia até o “olho”, aquele ponto limite entre o mundo terreno e o mundo celestial – ponto mágico que toda criança que teve infância interiorana conhece – e em que é possível colocar a cabeça para fora das folhas mais altas da árvore. Havia um galho especialmente feito pelo Criador para eu sentar e olhar os detalhes do mundo: era meu trono de príncipe – o príncipe do Reino do Pé-de-Manga! Esse lugar onde eu me postava – senhor da Terra até onde meus olhos alcançavam – até já era liso, lustrado e limpo de tanto me sentar ali. E dali – só com a cabeça de fora – eu via os telhados da vizinhança, o horizonte que se estendia sobre um pasto enorme que subia – interminável! – num morro suave e se conectava com o céu bem diante de nosso bairro. Ali, eu aprendi que as folhas das mangueiras nascem levemente rosadas e, depois, vão ficando mais vermelhas para, finalmente, se tornarem magicamente verdes! Aprendi que as formigas que brigam ferozmente por um fiapo de manga eram iguais aos seres humanos brigando por fiapos de poder e sobre gafanhotos saltitantes que pulam aparentemente sem destino, mas que sabem bem o que vão destruir adiante. Me tornei “doutor” em telhas e em nuvens com formatos incompreensíveis que escondiam discos voadores e anjos da guarda que só eu podia ver. Me tornei íntimo conhecedor anônimo das histórias de vida que eu inventava para os passantes miúdos que se arrastavam sombrios e cansados pelas ruas ao redor, sumindo por detrás das casas e aparecendo novamente nos terrenos vazios para, uns passos adiante, tornar a sumir para sempre. Ali, aprendi a imaginar, sonhei meu mundo e construí minhas esperanças na segurança da solidão – até o iniciozinho da adolescência, quando tive de sair de casa para tentar a vida longe de meus pais. Dois anos depois da separação, “minha” mangueira foi cortada e uma casa fria foi construída no lugar. A despeito da tristeza, tudo bem: já não importava mais. Ela já fazia parte inseparável da minha alma e eu já estava longe demais para provar seu doce abraço semanal.

E foi depois de “cair no mundo” que descobri que todo mundo precisa de uma mangueira, de um trono, de um lugar de solidão – e isso com regularidade! Todo mundo precisa de um lugar de paz, de sonho e de imaginação para ficar a-sós-consigo no meio do mundo, olhando de cima cada detalhe e construindo cada momento da vida porvir, mesmo que essa vida nunca chegue, que seja só esperança, que seja só paixão. Foi então que descobri que os livros doravante seriam meu novo pé-de-manga, meu novo lugar de paz, meu novo posto avançado entre as nuvens, lugar em que construo meu pensamento mais profundo. Sim! É no mundo das nuvens que a mente é mais poderosa, pois é ali que o mundo não pesa sobre nossos ombros nem nos oprime! Descobri que as folhas dos livros eram tão aconchegantes quanto as folhas da minha mangueira e que eram folhas igualmente mágicas, que mudavam de cor com a luz dos meus olhos e com o carinho da minha respiração. Descobri o quanto os livros são aconchegantes e quanto há do mundo para descobrir neles. Ensinei isso a minha esposa e a meus filhos e cultivamos isso em casa até hoje. Mesmo que não seja de forma tão frequente quando desejaríamos, de vez em quando – pelo menos! – fugimos para o “olho da mangueira” nos escondendo a-sós-conosco em meio às folhas dos nossos livros. E quando me retiro hoje do mundo frio e estressante para o aconchego dos livros, sinto a mesma paz, a mesma curiosidade e o mesmo êxtase que sentia quando estava no “olho da mangueira”. Mas, quando fecho os livros e olho para os lados, me apavoro! Percebo que isso tudo tem sido roubado das pessoas pelas telas digitais!

Ao invés de nos proteger como um canto seguro ou como uma árvore que nos esconde entre suas folhas aconchegantes, as telas digitais nos engolem, nos viciam... – e oferecem muito pouco em troca! Longe de nos trazer paz, elas nos roubam o pouco de paz que ainda sobrou em nós. São frias e não, aconchegantes. São duras e indobráveis e não macias e doces de tocar. São rasas e não profundas e misteriosas. E já vêm tão recheadas de tudo – de formas, de cores, de sons e de tremeliques – que não precisamos mais de nossos cérebros para imaginar discos voadores e anjos, pessoas passantes e suas histórias, profundidades, texturas, sons, cheiros e sabores. Mais do que isso, porém, elas são capazes de nos afastar de nós mesmos, porque nos dominam e nos dividem ao invés de nos acolher. E é assim que, hoje, nos encontramos tão distantes de nós... e dos demais. Não é o sofrimento cotidiano: este sempre existiu. É a pressa com que precisamos passar nossos dedos sobre as informações – e a absurda fugacidade com que elas somem diante de nossos olhos. É a falta de um lugar de paz, de onde observar o mundo com calma, construir esperanças sem pressa, viver sonhos e nos sentir protegidos entre folhas que mudam de cor. É falta de leitura. Falta de leitura profunda. É falta de esconder-se em bons livros que sejam capazes de nos levar seguros, mas curiosos, ao “olho da mangueira”.

 

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