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O Curso de Linguística Geral, de Ferdinand de Saussure, é nada menos do que um clássico da Linguística. Isso porque consiste em uma obra que exerceu, e continua a exercer, uma profunda influência não apenas nesse campo de conhecimento em que foi gestada, mas também fora de suas fronteiras. A força e o alcance das ideias contidas no Curso se impuseram, ora de modo mais explícito, ora de maneira mais subterrânea, tanto porque compreendem propostas e constatações inovadoras para os estudos linguísticos quanto porque representam a consolidação de um objeto de análise e de sua abordagem. Embora Saussure não tenha sido o único a conceber a língua e a Linguística de maneira diferente daquela em vigor entre os estudiosos dedicados ao método histórico-comparativo, entre o final do século XIX e o começo do século XX, no Curso de Linguística Geral os contornos e as definições desse objeto e dessa abordagem se encontram particularmente concentrados.

Desde sua publicação, começou a se estabelecer a ideia de que os fatos e os fenômenos a serem estudados pela Linguística não mais se resumiriam às mudanças das formas da língua através do tempo. Eles deveriam compreender, antes, as unidades linguísticas, as relações entre elas e as regras que permitem ou interditam suas combinações na constituição de unidades maiores e mais complexas, no interior de um sistema, num certo estado de uma sociedade. Se as ideias fundamentais do Curso de Linguística Geral já surpreendem, a coesão e a interdependência entre elas produzem ainda mais entusiasmo. À medida que se difunde o pensamento saussuriano, consolidam-se estas ideias: a língua é uma forma e não uma substância; ela funciona como um sistema; é um fato social; suas unidades valem menos pelo que são do que por suas relações de identidade e de diferença; o laço que une o significante ao significado de um signo é arbitrário; para o falante, não existe sucessão dos fatos da língua no tempo.

Cada um desses princípios implica fundamentalmente os demais e suas mútuas dependências constituem um sólido sistema conceitual. Foram a difusão e a conservação, mas também as modificações dessas ideias que fizeram do CLG uma obra clássica da Linguística. Seus postulados e noções se estabilizaram e passaram a constituir as entranhas dos estudos linguísticos de diversos modos, ao passo que diferentes atores e fenômenos, em tempos e espaços diversos, concorreram para alterar mais profunda ou mais superficialmente seus sentidos. Assim, como tende a ocorrer com os clássicos, o Curso de Linguística Geral dá provas de sua condição extraordinária tanto pelo que traz em si quanto pelo que proporciona a outrem.

Além dos já mencionados, outro dos princípios gerais do signo linguístico é o de sua imutabilidade e mutabilidade. Saussure afirma que “a língua forma um todo com a vida da massa social e esta aparece antes de tudo como um fator de conservação. Se a língua tem um caráter de fixidez, não é somente porque está ligada ao peso da coletividade, mas também porque está situada no tempo. Dizemos homem e cachorro porque antes de nós se disse homem e cachorro”. Em seguida, assevera também o seguinte: “O tempo, que assegura a continuidade da língua, tem um outro efeito: o de alterar mais ou menos rapidamente os signos linguísticos. O signo está em condições de alterar-se porque permanece”. De modo ainda mais categórico, Saussure sustenta que “o tempo altera todas as coisas; não existe razão para que a língua escape a essa lei universal”.

A história de seu Curso de Linguística Geral ilustra perfeitamente bem a conjunção entre as duas facetas desse princípio, tal como pudemos mostrar em Saussure, o texto e o discurso: cem anos de heranças e recepções (Parábola, 2016): ao lado da constituição e da preservação de heranças instauradas com o Curso, sucederam distintas e diversas recepções. O CLG foi, em diferentes condições históricas de produção do conhecimento linguístico e das ciências humanas, objeto de indiferença e de aclamação, de acolhida parcial e de recusa taxativa. Seu autor já fora considerado gênio precursor e peixe dentro d’água, positivista e quase insano, enquanto sua obra mais célebre teria, em diferentes versões da história, retratado, divulgado, modificado ou deturpado seu pensamento. Saussure já desempenhou o papel de “pai da Linguística moderna”, condição obtida pelo sucesso relativamente tardio do Curso, e, por essa mesma razão, encarnou a personagem do “censor”, que teria dificultado o avanço dos trabalhos sobre fala e sobre variação linguística, sobre sujeitos falantes e sobre distintos contextos de uso da língua em sociedade. Por toda a riqueza que contém, por toda a complexa história de suas heranças e de suas recepções, porque, enfim, se trata de um clássico incontornável dos estudos linguísticos, talvez valha ainda mais hoje do que já valia, a sua época, o conselho do Professor Isaac Salum, em seu Prefácio à edição brasileira do Curso de Linguística Geral: “... que nossos estudantes não sejam tentados a ‘superá-lo’ sem tê-lo lido diretamente”.

 

Carlos Piovezani

Professor associado da Universidade Federal de São Carlos

Bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq