mudana_lingustica

 

A mudança linguística decorre de três principais fatores: 

 

(1)    o aparelho articulatório da espécie humana (lábios, dentes, palato, língua, úvula, glote, laringe, pregas vocais etc.); 

(2)    a cognição humana, isto é, a nossa capacidade de processar experiências, adquirir e produzir conhecimento;

(3)    fatores socioculturais. 

 

 

o aparelho articulatório

 

Como o aparelho articulatório e os recursos cognitivos são os mesmíssimos em todos os seres humanos, as mudanças linguísticas apresentam um caráter universal, ou seja, as mesmas mudanças são encontradas na história das línguas mais diferentes e mais distantes entre si, sem nenhum parentesco nem contato. Os fatores socioculturais que respondem pelas mudanças linguísticas são basicamente a variação linguística (formas diferentes de dizer a mesma coisa que competem entre si até que uma delas se torne a mais usada) e o contato de línguas. 

 

Vamos ver como tudo isso ocorre?

 

As pronúncias “djia” e “tchia” para o que se escreve dia tia caracterizam a fala da maior parte dos brasileiros, a tal ponto que as pronúncias que não apresentam esse traço palatal se transformaram em estereótipos para caricaturar quem fala assim (nordestinos, por exemplo). O que leva a gente a dizer “djia” e “tchia” é a presença da vogal [i]. Essa vogal é produzida perto da região chamada palato (o “céu da boca”), é uma vogal palatal (ou anterior). Dizemos então que o [i] palataliza as consoantes [d] e [t], que deixam de ser produzidas exclusivamente na região dental. Mas isso só acontece no português brasileiro? Claro que não. Se a gente pedir a um falante de inglês que pronuncie a palavra soldier (“soldado”), vai ouvir claramente um “dj” (algo como “souldjer”), e o mesmo acontecerá se ele disser a frase I need you (“preciso de você”): vamos ouvir um “dj” na ligação do [d] de need com o [y] de you. E toda uma frase (“I have got you”, equivalente ao nosso “te peguei!”) se transformou numa única palavra escrita gotcha. No francês do Quebec (Canadá) a palavra mardi (“quarta-feira”) se pronuncia “mardzi”, enquanto type (“tipo”) é “tzipe”: esse “dz”/“tz” é um estágio de palatalização anterior ao “dj”/“tch” do nosso dia/tia. E mesmo no francês da França já se pode notar um início do mesmo fenômeno. Mas isso já tinha acontecido em épocas muito mais remotas. Por exemplo, o latim hodie está na origem do nosso hoje, com um “j” (que é uma consoante palatal) e do italiano oggi (que se pronuncia “odji”). O latim diurnu deu giorno (“djiorno”) em italiano e jour em francês. Podíamos dar exemplos de muitas outras línguas, mas esses já devem bastar para se perceber que não há nada de estranho ou original na nossa pronúncia “djia” e “tchia”: é uma tendência articulatória universal.

 

 

a cognição humana

 

As línguas são remodeladas incessante e inconscientemente pelas pessoas que as falam. Esses processamentos cognitivos incluem metáfora, metonímia, reanálise, analogia, recategorização, abdução e por aí vai. Mas, como já dissemos, os recursos cognitivos são os mesmos para toda a espécie, e esses processamentos e reprocessamentos acabam levando a resultados semelhantes em línguas sem nenhum parentesco. Por exemplo, em incontáveis línguas mundo afora, a expressão do futuro se dá pelo uso de um verbo auxiliar que pode indicar volição (“desejo”), obrigação (“dever”) ou movimento para adiante. O futuro em português se formou, inicialmente, com um auxiliar de obrigação: cantar hei (“tenho de cantar”) resultou em cantarei, e isso se deu em todas as línguas românicas. Hoje, o futuro mais comum é vou cantar, com um auxiliar de movimento para adiante. O inglês se dá ao luxo de ter as três formas de futuro: I will sing / I shall sing / I’m going to sing. O futuro de volição ocorre em inuit, dinamarquês, grego moderno, romeno, servo-croata, sogdiano, tok pisin etc. O futuro de obrigação ocorre em basco, inglês, em todas as línguas românicas etc. O futuro de movimento ocorre em abipon, atchin, bari, cantonês, cocama, guayami, krongo, mano, margi, maung, mwera, nung, tem, tojolabal, tucano, zúñi, francês, português, espanhol etc. Línguas faladas nos mais diferentes lugares do mundo, em sociedades e culturas completamente distintas entre si, mas que comprovam a universalidade dos processamentos cognitivos que submetem as línguas a mudanças. Volição, obrigação e movimento para adiante nos mostram a surpreendente semelhança dos modos como os seres humanos concebemos, analisamos e interpretamos a noção de futuridade.

 

 

os fatores socioculturais 

 

Por fim, temos os fatores socioculturais. Um dos mais importantes é o contato de línguas. Quando dois grupos humanos, falantes de línguas diferentes, entram em contato (quase sempre, ao longo da história, por meio da conquista colonial e/ou da escravização), é inevitável que essas línguas se influenciem mutuamente, em graus variados. O português brasileiro atual, por exemplo, resulta de intensos contatos entre a língua do conquistador europeu, as línguas indígenas (especialmente o tupi) e as línguas africanas (especialmente as do grupo banto). Não estamos aqui falando apenas de palavras incorporadas ao português (jacaré, acarajé, piranha, canjica), mas de transformações profundas na fonologia e na morfossintaxe, isto é, na gramática mesmo. Apesar do racismo doentio que marcou a formação histórica da nossa sociedade e faz do Brasil um país com uma das mais perversas segregações raciais do planeta, muitas características importantes do português brasileiro, e que o diferenciam não só do português europeu, mas de todas as demais línguas românicas, se devem às mudanças ocorridas quando o idioma do colonizador teve de ser aprendido na marra, na porrada e no chicote por falantes de línguas estruturalmente muito diferentes, sobretudo africanas, depois que os indígenas foram sistematicamente dizimados junto com suas línguas. Você pode nem saber (e pode até não gostar), mas o seu modo de falar, seu sotaque, sua forma de articular os sons, a gramática de tudo o que você diz a cada momento resultam em grande parte das mudanças introduzidas no português por nossos ancestrais indígenas e principalmente africanos.