Coesão e coerência textual

 

Tudo o que você queria saber sobre como construir um bom texto sem se estressar

 

Lutar com palavras, de Irandé Antunes, é mais do que um trabalho sobre a coesão e a coerência textuais. É, sobretudo, um exercício de tradução, em palavras simples e compreensíveis ao leigo, daqueles conceitos teóricos e técnicos que aparecem nos sisudos manuais de linguística textual e que, muitas vezes, passam, sem qualquer mediação explicativa, para os livros didáticos, e a professora ou o professor sequer conseguem saber do que se trata. A capacidade de dizer de maneira simples o complexo é uma das tantas virtudes de Lutar com palavras.

 

De fato, é comum que as professoras e os professores, no ensino fundamental e médio, e também no nível universitário, assinalem nas margens de redações ou de trabalhos de curso expressões como “falta coesão” ou “não tem coerência”. Mas o que está mesmo faltando neste caso? O que deveria ser feito para suprir a tal lacuna de coesão e coerência? É disso que esta breve e substantiva análise trata com naturalidade e muita intimidade, como se estivesse ensinando a fazer uma comida gostosa. E tudo isso sem dar receitas simples ou superficiais, além de mostrar a segurança de quem tem uma longa experiência neste tipo de assunto.

 

à exposição que atinge o leigo e não enerva o técnico e teórico exigente, pois não é superficial

 

Digo isto porque conheço Irandé Antunes e seu trabalho sério de há muito tempo, desde que se ocupava dessas questões no começo da década de 1980, quando escreveu sua dissertação de mestrado sob minha orientação, tendo em seguida desenvolvido tese de doutorado sobre a coesão textual na Universidade Clássica de Lisboa, que acabou se transformando no primeiro livro dedicado exclusivamente ao assunto no Brasil. Esta familiaridade com o tema, aliada a uma enorme experiência com professores da rede pública no ensino fundamental e médio, bem como em universidades públicas e particulares, deu à autora uma sensibilidade incomum para o tom adequado à exposição que atinge o leigo e não enerva o técnico e teórico exigente, pois não é superficial. Essas virtudes vêm aqui aliadas a um texto muito bem humorado e escrito com paixão e carinho, pensando sempre nos leitores.

 

Sob o ponto de vista teórico, a autora parte da ideia de que a língua não se acha confinada às regras da gramática, nem é uma questão de certo e errado, mas é uma atividade social que cria as condições da interação e dos processos comunicativos em geral. Além disso, sustenta que “escrever é, como falar, uma atividade de interação, de intercâmbio verbal. Por isso é que não tem sentido escrever quando não se está procurando agir com outro, trocar com alguém alguma informação, alguma ideia, dizer-lhe algo, sob algum pretexto”. Escrever é uma atividade que exige um movimento para o outro, definindo este outro como seu interlocutor. E é nesta relação que o próprio autor se constitui. Ninguém escreve sem um destinatário. É claro que, nessa visão, o que mais conta não vai ser a ortografia nem a simples regra de concordância e sim o desenvolvimento das ideias e a distribuição dos tópicos, a seleção lexical, a contextualização, o estilo que vão produzindo a adequação da escrita. Para a autora, “isso equivale a admitir que a coerência do texto é: linguística, mas é também contextual, extralinguística, pragmática, enfim, no sentido de que depende também de outros fatores que não aqueles puramente internos à língua”. A língua enquanto sistema de formas não comanda tudo.

 

a coerência do texto é: linguística, mas é também contextual, extralinguística, pragmática

 

Baseada nessas premissas, Irandé Antunes, conhecida por seus trabalhos sobre língua portuguesa numa linha inovadora e ligada à linguística textual e à análise da sociointeração, desenvolve uma série de argumentos mostrando como os textos são muito mais do que simples formas. Como apontado, o núcleo das observações recai nos processos de coesão e coerência. Mas o que é coesão? Como observá-la? Que faz o aluno quando a professora escreve que seu texto não tem coesão ou lhe falta coerência? Certamente, não se trata de trocar uma palavra, acrescentar ou mudar um conectivo, nem de melhorar o parágrafo ou adequar os tempos verbais e as concordâncias verbonominais. Lendo o livro, ficará claro do que se trata, efetivamente. Esta clareza é dada também por outra característica singular da autora: a farta exemplificação com trechos da literatura, do jornalismo e de obras científicas.

 

Em suma, o leitor encontra no livro uma introdução à produção textual escrita em linguagem acessível.

 

Parece pouco, mas é muito, e talvez seja quase tudo o de que necessitamos para tratar questão tão difícil e ao mesmo tempo tão decisiva. Neste afã, Irandé trata de “trocar em miúdos” os termos técnicos e as teorias, oferecendo aos leitores comuns uma ferramenta como não se tinha até agora. Esta é uma obra que sai do pedestal das teorias para chegar à realidade do usuário que mais necessita, isto é, o aluno, a aluna do ensino fundamental e médio, mas também o universitário, bem como o homem e a mulher que já saíram da escola e da universidade e entraram na vida e precisam continuar escrevendo.

 

Os textos são muito mais do que simples formas

 

Não se trata de dominar a língua enquanto uma forma e sim de saber como usá-la de maneira adequada nas mais diversas situações da vida diária e nos mais diversos graus de formalidade ou informalidade que se oferecem e nos quais devemos produzir gêneros textuais variados. “Escrever é sempre escrever textos”, lembra com razão a autora, e por isso não é possível escapar dessa atividade no uso da língua. Escrever não é fazer frases isoladas ou combinar formas apenas, mas produzir textos que sejam compreensíveis. Isto significa que escrever também é inalienável da leitura: escrever é oferecer algo para ler. Assim, a coesão e a coerência têm aspectos voltados tanto para o linguístico quanto para decisões relativas ao contexto social, cultural e cognitivo, levando em conta o interlocutor visado.

 

Para tanto, ao longo do livro, uma série de mitos é abalada. Por exemplo: não é verdade que só os dotados pela natureza escrevem bons textos. A rigor, todos, com algum esforço, podem produzir bons textos. Outro mito é a ideia de que todo texto deve ter elementos coesivos na superfície textual para funcionar. O que ele deve é permitir a compreensão. Constitui, ainda, uma visão distorcida imaginar que a repetição seja coisa da língua falada; basta ver a quantidade de repetições encontradas em textos jornalísticos, romances e trabalhos de teses, entre outros. A repetição, como mostra Irandé Antunes, é um recurso expressivo de enorme importância e até necessário em alguns gêneros textuais. Além desses, muitos outros mitos em relação à escrita vão sendo derrubados com enorme clareza e sedução argumentativa.

 

Não se trata de dominar a língua enquanto uma forma e sim de saber como usá-la de maneira adequada nas mais diversas situações da vida diária e nos mais diversos graus de formalidade ou informalidade

 

Não creio que seja minha missão dizer, numa breve apresentação, tudo o que a autora trata em obra de tanta densidade e com enorme transparência. Numa apresentação, tal como o gênero exige, deve-se criar o gostinho da leitura no leitor. Espero ter atingido este objetivo nestas breves observações. E assim, para saber mais, remeto você, leitora, leitor, à leitura atenta. Mas não poderia finalizar sem citar aqui o poema que serve de epígrafe ao capítulo 10, “A coesão e coerência”. Eis a magnífica passagem:

 

Subi a porta e fechei a escada.
Tirei minhas orações e recitei meus sapatos.
Desliguei a cama e deitei-me na luz

Tudo porque
Ele me deu um beijo de boa noite...

(Autor anônimo)

 

Após introduzir esse poema, a autora se indaga, logo no início do capítulo:

 

Seria esse texto incoerente? É possível descobrir nele alguma ponta de sentido? Melhor dizendo, é possível recuperar alguma unidade de sentido ou de intenção? Serve para ‘dizer’ alguma coisa? Se serve, como encarar o fato de as palavras estarem numa arrumação linear que resulta sem sentido? A porta sobe? A gente fecha a escada? A gente tira as orações e recita os sapatos? A gente desliga a cama e se deita na luz?

 

Não é difícil concordar com Irandé Antunes: o texto tem tudo para não dizer nada. Tem tudo para não funcionar, mas, felizmente, como constata a autora, vivemos num mundo em que nossas experiências e condições sociais, culturais e cognitivas permitem saber como se sentem os amantes beijando-se com ardor... Tudo se inverte, e então é possível até mesmo recitar sapatos, desligar a cama ou fechar a escada. A anônima poetisa (creio que ‘o autor’ é uma mulher), foi mais do que coerente: deixou-nos plenamente cientes de como se sentira após o beijo. Como acertadamente lembrado por Irandé a este propósito,

 

esse texto é coerente não porque, simplesmente, é um texto poético. Ele é coerente porque se pode, por uma via qualquer, recuperar uma unidade de sentido, uma unidade de intenção.

 

Pois bem, é mais ou menos assim — como a amante de que trata o poema acima — que você, leitora, leitor, vai se sentir em relação à coesão e à coerência depois de estudar este livro. Vai entender que é possível ser coerente e coeso sem seguir linearmente e na superfície, vai descobrir que na língua nem tudo é transparente e que muitas coisas só se constroem na relação com o leitor no ato da escritura voltada para a interação. O que se dá igualmente na produção oral. Enfim, na vida há muito mais do que formas linguísticas quando lidamos com a língua em funcionamento. E é deste algo mais que vem a maior parte dos efeitos de sentido que os textos provocam em nós. Neste livro você vai aprender como organizar o aspecto linguístico em consonância com este algo mais. E o mais importante: você não precisa ser um técnico em linguística para entender do que se trata e começar a agir na sua produção textual com maior segurança. Aproveite!