Marcos BAGNO
Nas primeiras décadas do século 20 foram publicadas diversas monografias que descreviam variedades específicas do português brasileiro. Decerto sob influência da dialetologia, disciplina fundada na Europa no final do século anterior, estudiosos brasileiros nos deixaram testemunhos valiosos sobre os modos de falar de algumas regiões. Um desses clássicos da nossa literatura linguística é O dialeto caipira, publicado em 1920 por Amadeu Amaral (1875-1929), intelectual paulista que se dedicou a vários campos de investigação como o folclore e a filologia, bem como a uma produção literária que inclui poesia e ensaios de variada temática. Já na abertura do livro, Amaral declara que o “dialeto caipira” estava praticamente extinto no momento da publicação, devido ao progresso das comunicações e à expansão do ensino. Foi para deixar documentados os traços característicos daquela variedade que Amaral provavelmente decidiu empreender seu trabalho, que acaba de ganhar uma nova edição comemorativa.
O principal interesse de O dialeto caipira para o público leitor de hoje está, quase paradoxalmente, no fato de que quase todos os fenômenos apresentados ali como “dialetais”, isto é, próprios de uma variedade especíica, não se limitam ao interior do Estado de São Paulo, área estudada por Amadeu Amaral. Também de forma paradoxal, então, o dialeto que supostamente tinha desaparecido continuava (e continua) a existir, e o próprio autor reconhece, em diversos momentos do texto, que vários daqueles fenômenos ocorriam também em todo o Brasil, não só em falares de populações rurais sem acesso à educação formal, como também na atividade linguística de pessoas “cultas” da zona urbana. E suas percepções estavam corretas.
Outras publicações dialetológicas das primeiras décadas do século 20 foram se sucedendo, até que em 1950 o carioca Serafim da Silva Neto (1917-1960) lançou a sua Introdução ao estudo da língua portuguesa no Brasil, uma obra pioneira em sua tentativa de descrever o português brasileiro com os dados e a metodologia disponíveis na época. Nesse livro, Silva Neto mostra que muitos dos fenômenos linguísticos até então rotulados como exclusividades de falares locais específicas eram, na verdade, conforme escreveu, “pan-brasileiros”, isto é, encontráveis em praticamente todas as regiões do país, do extremo norte ao extremo sul, de leste a oeste. As incontáveis investigações dialetológicas e sociolinguísticas realizadas desde então vêm comprovando que as chamadas “variedades populares” do português brasileiro apresentam uma grande convergência de traços, sobretudo no que diz respeito à morfossintaxe, ou seja, à gramática propriamente dita. As particularidades se limitam quase sempre a características fonéticas e, claro, ao vocabulário, que é sempre um repositório da cultura local. E mesmo no campo da fonética, sabemos que pronúncias como broco, praca, ingrês (para “bloco”, “placa”, “inglês”) e trabaio, véio, paia (para “trabalho”, “velho”, “palha”) ocorrem em todas as regiões do Brasil, no campo ou na cidade. Desse modo, o que “sobra” do dialeto caipira, depois de bem peneirado, é praticamente um único traço fonético: a pronúncia retroflexa do “r” em travamento silábico de palavras como porta, verde, corpo, pronúncia que recebe precisamente o nome popular de “R caipira”.
Os principais aspectos morfossintáticos assinalados por Amadeu Amaral constituem, de fato, regras já há muito tempo bem assentadas na gramática do português brasileiro mais geral. São usos que ocorrem tanto na fala das pessoas das camadas sociais menos privilegiadas quanto na das pessoas ditas “cultas”, quando não estão policiando sua atividade linguística: a diferença é basicamente de frequência desses usos. E diversos desses aspectos gramaticais já têm se enraizado com firmeza também na escrita de gêneros textuais mais monitorados, o que comprova a tese de que a mudança linguística, inevitável, avança da fala mais espontânea até a escrita mais formal, a despeito de toda a luta normativa de tentar frear essa mudança.