Ataliba-Teixeira-de-Castilho1

 

Um dos precursores dos estudos sobre o português falado no Brasil preza a liberdade dos usuários da língua e critica o apego excessivo dos gramáticos às regras

 

Na década  de 1970 o senhor  começou  o projeto da Norma Urbana Línguística Culta  (Nurc). Como foi?

A ideia era descrever a língua falada culta. Foi uma surpresa, porque a língua da gente culta tinha muitas  partes  condenadas pelos gramáticos, o que mostrava que nosso catálogo de “erros” não estava levando em conta o uso real da língua portuguesa no Brasil. Esse projeto começou com um professor espanhol do Colégio do México, na Cidade do México, Juan Miguel Lope-Blanch [1927-2002]. Ele fazia dialetologia, ou seja, descrevia a língua das regiões rurais  até perceber que as pessoas estavam migrando para as cidades.  Decidiu então fazer dialetologia urbana. Nos anos 1960, Lope-Blanch propôs o estudo da norma urbana culta falada nas capitais, não apenas para o espanhol, mas em toda a América e em Portugal. Essa proposta entrou no Brasil também pelas mãos de um dialetólogo, Nelson Rossi [1927-2014], da Universidade Federal da Bahia, que fez o primeiro atlas linguístico do Brasil. Em uma reunião em São Paulo em 1969, Rossi disse que Lope-Blanch queria estudar a língua das capitais, mas no Brasil nossa capital, Brasília, não servia como exemplo de fato linguístico relevante, porque era muito nova. Então escolhemos cinco capitais de estado, Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. Seguimos exatamente a mesma metodologia do projeto original. O Nurc foi muito bem nas gravações das entrevistas e depois nas transcrições, mas falhou na descrição. Foi feito um corpus gigantesco, com 1.500 horas de gravação. Quando chegou na descrição das estruturas – fonologia, morfologia, sintaxe –, não deu certo porque o questionário usado nas entrevistas não tinha uniformidade teórica,  era um trambolho. Apliquei o questionário para estudar aspecto e tempo verbal e vi que aquilo não levaria a resultado  nenhum, porque cada pergunta correspondia a uma teoria, diferente da que embasava a pergunta seguinte. Escrevi um texto sobre a não praticabilidade do questionário para a etapa mais importante, a descrição, o conhecimento. Em 1981, em um congresso na Universidade Cornell, nos Estados  Unidos, li o texto. Pensei que Lope-Branch iria me matar, pois ele era muito enfático  em suas intervenções, mas caí do cavalo. Sabe o que ele disse? “Você tem razão.” Quando não tínhamos como decidir,  submetíamos a questão  a uma votação, como se ciência fosse democracia. Não é, tem de ter coerência no conceito e não decidir no voto. Quando ele falou isso, concluí que tínhamos de sair do projeto. Mas, ao mesmo tempo, não podíamos deixar  de usar a maravilhosa quantidade de dados que o Nurc já tinha produzido.

 

“A língua falada é hesitante, interrompida, redundante, não planejada, fragmentada, incompleta, pouco elaborada, com pouca densidade informacional, frases curtas e simples.”

 

E o que fizeram? 

Voltei inconformado com os rumos  do projeto, mas depois tive a ideia de chamar os melhores linguistas do Brasil, que ainda não participavam do Nurc. Chamei Mary Kato e Rodolfo Ilari, da Unicamp, Leda Bisol, da PUC [Pontifícia Universidade Católica] do Rio Grande  do Sul, Luiz Antônio Marcuschi [1946-2016], da Universidade Federal de Pernambuco, e vários outros. Expliquei que o Nurc havia empacado porque a metodologia não tinha consistência. Perguntei se eles topavam fazer uma gramática usando o material do Nurc. Aí me perguntaram como eu queria essa gramática. Respondi: “Como eu quero, não; como nós queremos; é o trabalho de um grupo”. Então lancei a proposta de cada um ir para um canto e escrever um texto intitulado “Minha gramática como a concebo”, assim mesmo, com esse cacófato. Os grupos com afinidade  teórica  se reuniram espontaneamente, os gerativistas, os funcionalistas, os estruturalistas, cada um de um lado. Como o que cada grupo escreveu formava  um grupo de trabalho de pesquisa, nos dividimos  de acordo  com as ideias de cada um deles e planejamos nos encontrar uma vez por ano para discutir os resultados, usando de muita franqueza. Depois dos debates, cada um de nós recolhia o que tinha sobrado de seu texto, porque era muito séria a discussão. Depois, refazíamos os ensaios, que eram então publicados, formando uma coleção de nove volumes. Veio então o trabalho da consolidação dos resultados na gramática propriamente dita. Em 2006 saiu o primeiro dos oito volumes da coleção Gramática do português falado, pela Editora da Unicamp,  A construção do texto falado, organizado por Clélia Jubran, da Unesp, e Ingedore Koch, da Unicamp.  Elas fizeram  uma teoria  para explicar as peculiaridades do texto oral. Já numa segunda  edição, publicada pela Contexto, saíram sete volumes, entre 2012 e 2016. Com isso, o português brasileiro passou a ser a única língua da România nova a ter sua variedade culta amplamente documentada e descrita.

 

“Se concentrar na língua escrita a descrição de um idioma, estarei pegando  o ponto de chegada, não o ponto de partida, e vou ter um monte de ilusões sobre o funcionamento da língua que tomarei como verdadeiras.”

 

E quais são essas peculiaridades?

A língua falada é hesitante, interrompida, redundante, não planejada, fragmentada, incompleta, pouco elaborada, com pouca densidade informacional, frases curtas e simples. Vamos falando e criando ao mesmo tempo. Outra especificidade são os marcadores discursivos, o ? e o ?, sempre no final das frases. Há, portanto, uma regra de disposição;  a língua falada tem regularidades diferentes do português escrito.  Outro ponto é que aprendemos a modalidade falada primeiro e depois a língua escrita. Parece  um detalhe bobo, mas isso faz toda diferença. A língua escrita  vem depois de modo impositivo, porque aprendemos a língua falada na família e a escrita na escola. Tudo isso dá uma diferença tremenda entre essas duas modalidades. A gramática tradicional só se preocupa com a língua escrita. Se concentrar na língua escrita a descrição de um idioma, estarei pegando  o ponto de chegada, não o ponto de partida, e vou ter um monte de ilusões sobre o funcionamento da língua que tomarei como verdadeiras. A partir dos anos 1980, fiquei picado por essa mosca e me perguntei qual teoria poderia tirar daquilo. Criei a abordagem multissistêmica da língua, que usei como base da Nova gramática do português brasileiro e reelaborei para uma apresentação no 11. Deutscher Lusitanistentag, dia dos lusitanistas, organizado em 2015 em Aachen, na Alemanha.

 

Como definir a abordagem multissistêmica?

É muito simples. Toda a linguística sempre girou em volta de três eixos: fonética e fonologia [estudo dos sons], morfologia [estudo das flexões] e sintaxe [estudo das relações  entre  as palavras]. Além desse sistema,  que constitui a gramática, temos a semântica, que trata do sentido, o discurso, que é o modo como as pessoas compõem o texto, e o léxico, ou seja, as palavras. Estamos então falando da língua como um conjunto de quatro sistemas, o léxico, a gramática, a semântica e o discurso. Para descrever um fenômeno de modo completo, tenho de passar por esses quatro sistemas: léxico, semântica, gramática e discurso. Um indivíduo sozinho consegue  fazer isso? Não. O estudo de uma língua tem de ser feito em grupo. Esse é o corolário do Nurc, da Gramática do Português Falado e do Projeto para a História do Português Brasileiro,  que também estimula a convivência de gente com visões diferentes, abrigando sociolinguistas,  gerativistas, funcionalistas e cognitivistas.

 

Como o senhor faz para reunir pessoas com visões  diferentes?

Eu respeito o pensamento diferente. E ao respeitar você junta as pessoas. Ninguém quer ficar levando lambada dos outros. Ciência não existe para isso, mas para unir as pessoas  na descoberta do conhecimento. Algumas pessoas  têm mais facilidade e outras,  mais dificuldade para fazer isso. Quando  as coisas emperram e as opiniões parecem inconciliáveis, às vezes tenho  de lembrar: “E a nossa obrigação, o nosso dever?”. Vou com meu discurso de protestante presbiteriano. Fui criado nessa igreja em São José do Rio Preto.

 

 

Este texto é a terceira parte da entrevista concedida pelo Prof. Ataliba T. de Castilho a Carlos Fioravanti, da revista “Pequisa Fapesp”, em setembro de 2017. Agradecemos à “Pesquisa Fapesp” e a Paula Iliadis a licença de reprodução, a Carlos Fioravanti, a colaboração, a Fernando Cunha, a mediação para a liberação da matéria para a Parábola Editorial.