AQUISIÇÃO DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS

 

Um modelo fractal

 

Os modelos de aquisição de línguas não contemplam todos os processos envolvidos na aquisição de uma língua, muito menos, os de uma língua estrangeira. Vejo esses modelos como visões fragmentadas de partes de um mesmo sistema. Embora seja possível teorizar sobre a existência de alguns padrões gerais de aquisição, cada pessoa tem as suas características individuais, sendo impossível descrever todas as possibilidades desse fenômeno. Há variações biológicas, de inteligência, aptidão, atitude, idade, estilos cognitivos, motivação, personalidade e de fatores afetivos, além das variações do contexto onde ocorrem os processos de aprendizagem ─ quantidade/qualidade de input disponível, distância social, tipo e intensidade de feedback, cultura, estereótipos, entre outros.

 

A combinação desses fatores, no entanto, não é determinante no sentido de que, um conjunto X, na proporção Y de variáveis, geraria uma aprendizagem bem-sucedida ou malsucedida. O ser humano é imprevisível, e mudanças e ajustamentos diferentes podem ocorrer em situações semelhantes.

 

Larsen-Freeman (1997) foi quem primeiro tratou da complexidade à luz da teoria dos sistemas complexos ou teoria do caos.

 

"A teoria do caos afirma que pequenas mudanças podem resultar em grandes diferenças e que há uma ordem subjacente a tudo que nos rodeia."

 

Essa forma de pensamento não linear contraria a lógica cartesiana, ignora as hipóteses deterministas e abandona o conceito de ciência no sentido de que o conhecimento deve ser sistemático, objetivo e generalizável. O conceito de contexto passa a ser crucial para que possamos entender a natureza diversificada dos fenômenos. De acordo com a nova forma de olhar os fenômenos, os sistemas são complexos, não lineares, dinâmicos, caóticos, imprevisíveis, sensíveis às condições iniciais, abertos, sujeitos a atratores, e adaptativos, pois se caracterizam pela capacidade de auto-organização.

 

Larsen-Freeman comprova que há semelhanças entre a ciência do caos/complexidade e a aquisição de segunda língua:

 

 

Para defender sua tese, a autora se limita a discutir cinco exemplos:

 

 

Para as ciências da complexidade, a natureza é um sistema complexo e, dentro dele, convivem outros sistemas igualmente complexos. Parece-me promissor, portanto, pensar a aprendizagem de línguas como um desses subsistemas dinâmicos e complexos, e, assim, tentar explicar tanto a aquisição de línguas, sem ignorar as especificidades de cada uma.

 

Há evidências suficientes para advogar que a aprendizagem de línguas parece ser realmente um sistema complexo adaptativo – complexo pela dificuldade de descrição e adaptativo pela capacidade de adaptação às diferentes condições impostas pelo ambiente. A passagem de falante de uma língua materna para falante de uma segunda língua, ou língua estrangeira, é algo complexo que acontece entre a ordem total e o caos, ou seja, em meio à imprevisibilidade.

 

Ao longo de minha carreira tenho encontrado várias evidências de que a aprendizagem de línguas é um sistema complexo. Um desses exemplos é a capacidade de adaptação, uma das características dos sistemas dinâmicos. Nos dados de minha pesquisa sobre estratégias de aprendizagem (Paiva, 1994), verifiquei que meus informantes tentavam se adaptar ao contexto de aprendizagem de línguas estrangeiras procurando aumentar as oportunidades de uso do inglês. Alguns relataram que conversavam consigo mesmo em frente ao espelho; outros tentavam nomear em inglês tudo o que viam ao longo do seu percurso de ônibus para o trabalho; assistiam a muitos filmes; ouviam canções; correspondiam-se com falantes da LE; e, principalmente, liam muito.

 

Outro exemplo de adaptação é a utilização da competência estratégica (Canale e Swain, 1980), ou estratégias de compensação (Oxford,1989), que auxilia o aprendiz a superar limitações no seu conhecimento. Ou seja, para superar falhas de seu conhecimento do idioma, o aprendiz lança mão desse tipo de estratégia e, assim, restaura o equilíbrio na interação com o texto ou com outro falante.

 

Saber uma língua não é apenas uma questão relacionada ao acúmulo de informações sobre as estruturas linguísticas e o vocabulário, mas também a capacidade de criar novos enunciados a partir das conexões e do gerenciamento de interações orais e escritas.

 

Como afirma Packard (apud Gleick, 1989;251), "no desenvolvimento da mente de uma pessoa, desde a infância, as informações não são, evidentemente, apenas acumuladas, mas também geradas ─ criadas a partir de ligações que não estavam ali antes". Essa criatividade, já detectada por Chomsky (1957), parece explicar a capacidade que leva os aprendizes a produzir enunciados que nunca ouviram antes.

 

professor deveria permitir que a criatividade de seus alunos aflorasse como no ditado chinês, "deixe que uma centena de flores floresça"

 

Acredito que a teoria dos sistemas complexos possa explicar fenômenos, tais como:

 

 

Pensar a aquisição de línguas sob o prisma dos sistemas complexos leva-me a concluir que o professor deveria permitir que a criatividade de seus alunos aflorasse como no ditado chinês, "deixe que uma centena de flores floresça", em vez de impor a sua própria forma de aprender, ou suas crenças sobre a aquisição de uma língua.

 

É também papel do professor encorajar o contato constante do aprendiz com as mais diversas formas de input e promover as interações entre os diversos falantes (aprendizes, falantes competentes e nativos). A aprendizagem de uma língua, um processo também social, depende dessas conexões entre falantes.

 

Nos contextos de aprendizagem formal, a função do professor seria promover oportunidades de uso da língua e dar liberdade para que o aprendiz utilize as estratégias que melhor funcionem para ele, para, assim, aprender de acordo com seu estilo de aprendizagem. Através do uso do idioma em contextos formais ou naturais, o sistema complexo da aquisição segue sua rota e o aprendiz vai construindo seu conhecimento e adquirindo o idioma.

 

Dessa forma, nosso papel é "perturbar" uma zona estável e provocar o caos que resulta na zona de criatividade ("limite do caos" ou ZDP), onde pequenas mudanças podem ocorrer, gerando efeitos significativos nos processos de aprendizagem.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CANALE, M.; SWAIN, M. Theoretical bases of communicative approaches to second language teaching and testing. Applied Linguistics. Oxford: Oxford University Press, v. 1, n. 1, p.1-47, 1980.

CHOMSKY, N. Syntactic Structures. The Hague: Mouton, 1957.

GLEICK, J. Caos: a criação de uma nova ciência. Trad. de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Campus, 1989.

OXFORD, R.L. Language learning strategies: what every teacher should know. New York: Newbury, 1989.

PAIVA, V.L.M.O. Estratégias individuais de aprendizagem de língua inglesa. Letras&Letras. Uberlândia, v. 14, n. 1, p. 73-88, jan./jul.1998.

  

A íntegra deste texto [atualmente disponível em http://www.veramenezes.com/modelo.htm, acesso: 27 Jul 2017] foi originalmente publicada como PAIVA, V. L. M. O. (2005). Modelo fractal de aquisição de línguas,  In: BRUNO, F.C. (org.) Reflexão e prática em ensino/aprendizagem de língua estrangeira. Rio Claro: Editora Clara Luz, p. 23-36.

 


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