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Luciano Amaral Oliveira

 

         2020: ano marcado no Brasil por uma pandemia, por distorções do que seja a liberdade de expressão, por ameaças à democracia. Marcas negativas, mas não indeléveis. Elas podem ser extirpadas, total ou parcialmente, com enfrentamento científico, com resistência política.

         Mas, em meio a essas marcas negativas, me surge uma marca pessoal positiva: o Coisas que todo professor de português precisa saber completa dez anos desde que foi impresso e publicado pela primeira vez pela Parábola Editorial. E isso é positivo pelo fato de o Coisas... continuar sendo lido por professoras e professores de português.

         Lembro-me da motivação para escrever esse livro: um sentimento de dever para com aquilo que chamo de democracia linguística. Lecionando no curso de Letras da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), naquele lindo e riquíssimo caldeirão baiano de diversidade cultural conhecido como a Princesa do Sertão, eu sentia a necessidade de participar da luta em defesa do direito de todas as brasileiras e de todos os brasileiros, sem exceção, de se apropriarem conscientemente da língua portuguesa para exercerem seus direitos de cidadãs e cidadãos.

E essa participação se materializava nas minhas aulas para estudantes que eventualmente estariam na linha de frente da resistência, da luta por esse direito: futuras professoras e futuros professores de português. Afinal, são tais profissionais que ajudam crianças, jovens e adultos a constituírem suas identidades linguísticas e a dominarem a famigerada norma-padrão, sem cujo domínio não poderão sequer usufruir de muitos direitos constitucionais e da literatura, arte fundamental para vermos as coisas por ângulos diferentes.

         Foi lá, na minha querida UEFS, que iniciei uma pesquisa sobre o ensino pragmático da gramática, da qual surgiu a ideia de compartilhar, na forma de um livro, minhas ideias sobre um ensino de português que não apenas ultrapassasse o limite da nomenclatura gramatical, das regras rígidas (e, por vezes, nonsense) exigidas por gramáticos normativos, mas também tratasse respeitosamente as variedades linguísticas levadas por alunas e alunos para a sala de aula. Eu vislumbrava um ensino desconstruidor de falácias linguísticas longevas, como os mitos da homogeneidade linguística, da inexistência da palavra presidenta e da corrupção da língua portuguesa por supostos terroristas linguísticos que estariam matando o português e semeando ervas daninhas no canteiro da flor do Lácio.

         Em 2020, já marcado e registrado nos anais da história pela pandemia do coronavírus, a pandemia do preconceito linguístico ainda persiste, impedindo a democracia linguística de alvorecer e de se firmar no horizonte de tantas pessoas falantes legítimas, alfabetizadas ou não, escolarizadas ou não, dessa língua que é nossa... e que não é (que o digam os povos indígenas!). E enquanto essa pandemia linguística resiste a desaparecer, a resistência de professoras e de professores precisa se intensificar.

         Nesse sentido, acredito, o Coisas... continua dando sua contribuição para a defesa da democracia linguística, para a resistência contra o preconceito linguístico. Afinal, como eu disse em um discurso de formatura na UEFS, feito em cordel, “nós fala como quiser / e eles entende como puder”.