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Um argumento que aparece com frequência quando as pessoas querem criticar o discurso purista que vocifera contra as mudanças e as inovações na língua é dizer que a língua é um “organismo vivo” e, por isso, está sempre em transformação, “evoluindo”. A militância contra o purismo é sempre bem-vinda, até porque o reacionarismo linguístico é com frequência a face visível de uma concepção de sociedade em que os indivíduos ou os grupos sociais também são classificados como “certos” e “errados”, “bons” e “ruins”, “santos” e “pecadores” etc. No entanto, por mais bem intencionada, essa comparação da língua com um organismo vivo presta mais desserviço do que ajuda. Como sempre, um pouco de história faz bem.

Durante uns bons dois mil anos, desde a filosofia grega mais antiga, a maior parte das reflexões sobre as línguas no Ocidente se articularam em dois eixos: a gramática e a lógica. Os antigos acreditavam que o funcionamento da mente (psyche) estava refletido no funcionamento da língua (logos), que por sua vez refletia o funcionamento do mundo natural (physis), que refletia por fim a organização do universo (kosmos). Nossos antepassados gregos eram fãs da simetria (palavra grega, aliás), e tentavam encontrá-la em todos os aspectos da vida, do visível, do invisível, do falável e do pensável. Mas também tinham um grande apreço pela correção, pela forma justa e perfeita das coisas, uma ideia contida na palavra orthos (“reto, correto”) que encontramos em palavras como ortografia, ortodoxia, ortodontia etc. Desse modo, não interessava a eles estudar a língua e a mente em todas as suas modalidades de funcionamento, mas somente naquilo que fosse considerado correto, claro, bem definido etc. Daí surgiram as disciplinas chamadas gramática, que define o que é certo na língua, e lógica, que define o modo certo de raciocinar. A gramática seria então a lógica da língua, enquanto a lógica seria a gramática do raciocínio. Essa concepção das coisas é tão bonita, tão bem esculpida que a gente acaba se apaixonando por ela e esquecendo que é falsa. E é falsa justamente porque é normativa, isto é, não se interessa pelo que as coisas são, mas pelo que elas deveriam ser, segundo concepções muito restritas, condicionadas pelo lugar, pela época, pelas crenças, pelas divisões sociais etc.

Uma coisa interessante na palavra lógica é que ela deriva de logos, um termo cujos sentidos foram se complicando com o passar dos séculos, mas que, em sua origem mais original, mesclava pensamento e linguagem: o logos era “palavra”, mas também “razão”. De fato, já na Grécia clássica (séculos 5 a 3 antes da nossa era), logos era o “enunciado dotado de sentido” (e no grego bíblico se tornou nada menos que a Palavra divina, o Verbo divino). Aqui se vê bem a ideia de que língua e pensamento (logos e... logos) eram o verso e o reverso de uma mesma folha de papel. 

Essa associação gramática-lógica imperou durante muitos e muitos séculos. Foi abandonada na linguística moderna, mas suas raízes estão bem firmes no senso comum, contaminado pelo vírus da normatividade. Muita gente condena determinadas construções sintáticas porque estariam contrariando a “lógica” da língua. Eu não posso dizer “vou ir” porque isso fere essa tal lógica, afinal “vou” já tem em si a ideia de “ir”. Mas essa é uma análise furada, aliás nem análise é. O vou de “vou ir” é uma mera partícula indicadora de futuro, já se esvaziou semanticamente da ideia de “ir”. Engraçado é que ninguém vê como “ilógicas” construções como “vou voltar” ou “vou ficar”. Enfim, essa é a primeira definição equivocada de língua que se fixou no imaginário ocidental: a língua como um conjunto de “regras lógicas”. De resto, o importante linguista francês Émile Benveniste (1902-1972) mostrou que a lógica clássica era simplesmente uma transferência, para a análise do raciocínio, das categorias gramaticais da língua grega. Se Aristóteles falasse húngaro, tupi ou malaio, sua lógica seria completamente diferente!

Toda essa longa tradição vai ser abalada e abandonada em boa parte no século 19, quando nasce a ciência chamada linguística. A constatação definitiva de que a maioria das línguas faladas na Europa eram aparentadas entre si e também tinham vínculos genéticos com muitas línguas faladas no atual Irã e na Índia, entre outros lugares, revolucionou os estudos linguísticos. Uma ciência, pensavam os linguistas do século 19, tem que se interessar por tudo o que existiu e existe numa língua, independentemente de ser certo ou errado, bonito ou feio, “lógico” ou “ilógico” etc. Nisso tentaram acompanhar os outros cientistas, cuja áreas específicas começavam também a se constituir naquele período: um geólogo não vai estudar só as pedras preciosas ou as que ele considera mais bonitas, vai estudar todos os fenômenos que dizem respeito ao mundo mineral. Foi desse modo que a gramática foi substituída pela linguística, enquanto a antiga lógica clássica foi substituída pela psicologia, a ciência que se interessa por tudo o que se processa na mente humana, e não apenas pelos modos de raciocínio corretos, regrados etc. Mas a entrada em cena da psicologia como auxiliar da linguística só aconteceu no final do século 19, lá pelos anos 1870. Antes dela, quem fez um belo estrago na linguística foi a biologia ou, melhor, uma apropriação bem indevida da biologia...

Há exatos duzentos anos nascia August Schleicher (1821-1869), um dos muitos nomes da linguística alemã que dominaram os estudos das línguas naquele século. Schleicher tinha grande interesse pela botânica. Ao se iniciar nos estudos linguísticos, transferiu para eles algumas concepções e termos da ciência dos vegetais: se hoje falamos de morfologia da língua é por causa dele, que aproveitou um termo biológico, junto com raiz, gênero, espécie, variedade. Também foi ele que traçou a famosa árvore genealógica das línguas: do tronco original (o indo-europeu) surgiram ramos que, a seguir, se desdobraram em outros ramos e assim sucessivamente. 

A ideia da árvore, evidentemente, foi mais um empréstimo tomado da botânica. Quando, porém, Schleicher entrou em contato com a teoria da evolução de Darwin (A origem das espécies é de 1859), suas concepções de língua, que já eram organicistas, ganharam um forte aliado. É comum ouvir a história de que os linguistas do século 19 se valeram de Darwin para assumir a hipótese organicista, mas basta ler A origem das espéciespara ver que foi o próprio Darwin o primeiro a comparar as transformações das línguas a partir de um ancestral comum com as fases evolutivas das espécies vivas (uma comparação muito arriscada, mesmo sendo apenas figurativa: Darwin sabia que as línguas não podem ser organismos vivos!). O certo é que as concepções organicistas, que já circulavam na época, se viram confirmadas “cientificamente” pela teoria darwinista. As línguas passaram a ser entendidas, numa visão muito pessimista,  como organismos vivos, que nascem, crescem, se desenvolvem, decaem e morrem, como qualquer outro ser vivo, tudo isso em total independência dos seres humanos que falam essas línguas. Foi a primeira grande idealização da língua como uma “coisa em si”, como uma planta que, por acaso, vive em determinado ambiente e não em outro (como a língua vive no ambiente social, sem que isso signifique muita coisa). Muita água passou por baixo da ponte da linguística desde então, mas a noção da língua-organismo se fixou no imaginário comum e está ali, bem plantadinha, até hoje, com seus subprodutos: a “decadência” da língua, o caráter “primitivo” de algumas línguas em relação a outras, mais “desenvolvidas”, e todo esse besteirol.

E a psicologia? Quando vai aparecer? Pouco depois da morte de Schleicher, um grupo de linguistas barulhentos, alemães também, promoveram muitas polêmicas, criticaram seus antecessores e propuseram uma revolução no modo de estudar as línguas. Foram chamados, pejorativamente, de Jovens Gramáticos(Junggrammatiker, um termo que foi traduzido para outras línguas como “neogramáticos”, o que tira toda a graça da zoação). Desprezaram a ideia organicista e afirmaram, apoiando-se na psicologia já bem desenvolvida: a língua é um produto-processo da mente humana e se manifesta pela articulação dos órgãos da fala. Assim, para estudar a língua era necessário recorrer a duas ciências: a psicologia e a fisiologia, sempre com foco no indivíduo. A doutrina dos Jovens Gramáticos encontrou sua formulação mais bem-acabada na obra de Hermann Paul (1846-1921), os Princípios de história da língua (1886). Esse livro foi a bíblia dos linguistas durante mais de quarenta anos e seu impacto profundo no Curso de linguística geral(1916), publicado sob o nome de Ferdinand de Saussure (1857-1913), é visível e palpável a cada página. A escola estruturalista, que veio a dominar a linguística no início do século 20, transformou os Jovens Gramáticos em figuras caricatas, mas a historiografia mais recente vem demonstrando que, se for o caso de definir uma data para o surgimento da “linguística moderna”, o melhor é localizá-la em 1878, quando os Jovens Gramáticos publicaram seu famoso Manifesto. Afinal, repito, a obra que supostamente inaugurou o estruturalismo, o Curso de linguística geral, está semeada de concepções jovem-gramaticais: basta lembrar que Saussure estudou com os Jovens Gramáticos na Universidade de Leipzig, e sua obra-prima científica, o Memorial sobre as vogais do indo-europeu (1879), radicalizou de forma brilhante (ele tinha só 21 anos!) os métodos de investigação dos Jovens Gramáticos.

Mas se a língua não é uma “lógica” nem um organismo vivo, o que é então? O estruturalismo fincou pé na noção de sistema, que já vinha sendo usada também desde o século 19, mas foi eleita Miss Língua justamente no início do século 20. Essa ideia da língua como sistema está bem arraigada até hoje no ambiente científico. Ufa! Quer dizer afinal que a língua é um sistema? Não, a língua não é um sistema. Tanto a ideia de organismo quanto a ideia de sistema são metáforas, são maneiras de tentar dar alguma forma racional a uma coisa à qual não temos acesso: a língua ou, mais amplamente, a linguagem, uma faculdade cognitiva que reside no cérebro de cada pessoa. A única coisa que está ao nosso alcance são os ruídos que fazemos com a boca, a língua, os dentes, os alvéolos, o palato etc. Podemos gravar esses ruídos, eles são dados concretos, são audíveis. Mas a morfologia e a sintaxe, em suma, a gramática da língua, seu funcionamento interno... puro mistério. Tudo o que podemos fazer é, a partir dos dados que temos — os sons que se organizam em sílabas, que se organizam em palavras, que se organizam em sentenças, que se organizam em textos — sistematizar esses dados para tentar compreender o que são, como são e por que são como são. 

O linguista estadunidense William D. Whitney (1827-1894) se valeu da metáfora orgânica em seus textos, mas fez questão de enfatizar que se tratava exatamente disso, de uma metáfora, porque, escreveu ele, “a língua, de fato, não tem existência alguma a não ser nas mentes e nas bocas daqueles que a usam”. Também disse que não há problema nenhum em usar metáforas porque “só são prejudiciais quando permitimos que elas nos ceguem à real natureza das verdades que representam”. (Em tempo: Whitney também foi uma fonte importante de noções para Saussure.)

E como ficamos? A língua não é um organismo vivo nem é um sistema. O grande problema com essas duas metáforas, quando “nos cegam” e passamos a acreditar nelas como fatos reais, é que simplesmente eliminam os seres humanos, desvinculam a língua dos corpos individuais e sociais que somos nós, as pessoas de carne e osso que falamos a língua. Quando quisermos nos defender dos milicianos da língua, não precisamos dizer que a língua, por ser um “organismo vivo” está sempre “evoluindo” ou coisa assim. O melhor seria dizer, com Whitney, que a língua só existe na mente e na boca de quem a fala e que, justamente por isso, não é “a língua” que muda e se transforma, somos nós, falantes da língua, que em nossas interações sociais por meio da linguagem provocamos a mudança linguística. A mudança resulta, portanto, de fatores de ordem cognitiva e social, tem tudo a ver com o que fazemos da língua a cada momento, a vida toda e, sobretudo, de maneira inconsciente. Defender a mudança linguística, reconhecê-la como inevitável, é defender a própria natureza de tudo o que existe em nós, na sociedade, na natureza e no mundo. Como escreveu o filósofo Heráclito, quinhentos anos antes da nossa era, “panta rhei”, “tudo flui”, e querer impedir o fluxo de tudo é tarefa inglória, ingrata e inútil, além de tremendamente reacionária.