Língua Portuguesa e a excessiva busca de correção

10 MANDAMENTOS +1 PARA EXORCIZAR A HIPERCORREÇÃO

 

Ultracorreção: fenômeno que se produz quando o falante estranha, e interpreta como incorreta uma forma correta da língua e, em consequência, acaba trocando-a por uma outra forma que ele considera culta; nessa busca excessiva de correção […], nota-se em geral o temor do falante de revelar uma classe de origem socialmente discriminada; hipercorreção, hiperurbanismo” (Dicionário Houaiss da língua portuguesa).

 

  1. Não usarás o verbo possuir

Em 99% dos casos, o querido e meigo verbo ter resolve a situação. Nos demais casos, dê uma paquerada no complemento, namore o objeto direto e veja qual verbo combina melhor com ele. Por exemplo, uma fábrica não “possui” encomendas de um modelo novo de carro: ela recebe encomendas. Ninguém “possui” dores nas costas: a gente sente/sofre/padece de dores nas costas. Uma cidade não “possui” problemas de transporte público: ela exibe/apresenta/ostenta problemas de transporte público… e por aí vai. O problema não é o verbo em si, mas a tendência que muitas pessoas exibem de querer usar possuir na crença de que é mais “sofisticado” ou “mais chique” e, por causa disso, de querer empregar o verbo dez ou doze vezes por página! Melhor é não usar nunca.

 

  1. Não usarás em vão o pronome relativo o qual como sujeito

Tem coisas que são ensinadas na escola e que deveriam ser proibidas por lei. Uma delas é a bobagem de que “é preciso evitar o que”, mas sem dizer como. E toca a usar o qual de norte a sul, de leste a oeste. Evitar o que é muito difícil, porque essa partícula assumiu, ao longo da história da língua, uma grande quantidade de funções. Além disso, uma boa produção escrita não se obtém simplesmente substituindo umas palavras por outras (“troque todos os mas por porém”!), mas sim pelo domínio consciente dos recursos disponíveis para uma adequada articulação do texto.

Devemos usar o qual (e flexões) quando entrar em jogo um verbo transitivo indireto, ou seja, daqueles que regem uma preposição: “Uma época da qual sinto saudades”; “países com os quais mantemos boas relações comerciais”; “um direito pelo qual vale a pena lutar” etc. Como sujeito do verbo, basta o que: “Um professor o qual que me ensinou muito”.

Outro problema comum entre as pessoas que usam o qual sem bom conhecimento de causa é deixar o pronome sempre no masculino singular e sem a preposição. Coisas do tipo: “Livros o qual preciso urgentemente”, “cidade o qual temos uma filial”, “problemas o qual já me referi” etc. Isso é o resultado da nossa melancólica educação linguística: se esfalfa por ensinar o que é inútil e passa ao largo do que é de fato importante…


  1. Não usarás o mesmo como pronome

O uso de o mesmo (e flexões) como pronome faz parte do que costumo chamar de “Sacrílega Trindade da Hipercorreção”, os três principais sintomas de um escasso domínio dos recursos que a língua oferece para uma boa produção textual e, ao mesmo tempo, da crença de que basta empregar ad nauseam determinadas formas linguísticas para tornar o texto “sofisticado”. Os outros dois sintomas são justamente os já citados possuir e o qual.

Quando começo a ler alguma coisa e topo com possuir, o qual e o mesmo, já sei que vou ter de enfrentar um texto ruim, truncado, mal construído, sem os requisitos mínimos de coesão e coerência, essas duas fadas madrinhas que têm o condão de fazer as ideias cantarem em nossos ouvidos como sabiás nas manhãs de setembro.

Aqueles três sintomas costumam aparecer juntos, agarradinhos, logo no início do texto, e são repetidos à exaustão, como muletas a que a pessoa se agarra por insegurança no bom trato com a escrita. É o resultado do nosso ensino de língua que sempre foi catastrófico e que agora só tende a piorar, na atual situação política hedionda do país, em que o ministério responsável pela educação está nas garras sebosas de uma hidra-de-lerna obtusa e pacóvia, para dizer o mínimo.

Voltando a o mesmo, basta usar os pronomes pessoais ele (e flexões) ou então deixar o verbo sozinho, sem pronome-sujeito, uma verdadeira elegância, nada a ver com a falsa sofisticação que muita gente pensa haver no uso de o mesmo: “Não bata o portão: o mesmo ele se fecha sozinho.” / “Convidamos o reitor na expectativa de que o mesmo aceitasse presidir a cerimônia.”

 

  1. Não levarás trata-se de para o plural, não lhe atribuirás um sujeito nem escreverás em se tratando de

Trata-se de é uma locução unipessoal, isto é, só se conjuga na 3pessoa do singular. Assim como se usa o verbo haver com sentido existencial sempre no singular (“Havia corruptos notórios entre os parlamentares que depuseram a presidenta eleita”), trata-se de também só se emprega no singular: trata-se de/tratou-se de/tratava-se de etc., não importa o número do substantivo que vier em seguida, porque esse substantivo é sempre-e-para-sempre-amém complemento oblíquo do verbo tratar e nunca-jamais seu sujeito nem seu objeto direto: “Não é pouco dinheiro: trata-se de bilhões de reais surrupiados dos cofres públicos pelo tucano e sua corja”.

Por conseguinte, também é errado atribuir um sujeito à locução trata-se de. Não se deve construir enunciados do tipo: “Aqueles documentos tratavam-se de provas cabais da corrupção praticada pelo atual chefe da Casa Civil”. Aqui basta o verbo ser“Aqueles documentos eram provas cabais da corrupção praticada pelo atual chefe da Casa Civil”. Usamos tratar-se de para retomar alguma coisa dita anteriormente: “Eram documentos importantes: tratava-se de provas cabais da corrupção praticada pelo atual chefe da Casa Civil”. E sempre no singular!

Quanto ao em se tratando de, vamos combinar que cheira a mofo, né? Não tem a menor necessidade, pode ser deixado no museu das velharias da língua. De novo, o problema reside no uso maníaco da muleta pseudochique: quando ela aparece pela primeira vez num texto, você pode apostar que vai reaparecer o tempo todo, diversas vezes por página, deixando o texto pesado e gorduroso. Vamos preferir sobre, acerca de, no que diz respeito a, quanto a, no tocante a etc., mas sempre variando, sem agarrar uma dessas expressões e espremer a pobrezinha até sangrar!

 

  1. Não usarás o possessivo vosso

O pronome vós não é usado na língua há muito e muito tempo. Ninguém no Brasil, na fala espontânea ou na escrita monitorada, emprega o pronome vós e a morfologia verbal correspondente, a menos que queira arrancar gargalhadas. Só encontramos esses brontossauros linguísticos em textos fossilizados há séculos, como orações religiosas tradicionais, hinos, traduções da Bíblia ou de clássicos renascentistas etc. Na vida da língua, na língua da vida, vós não existe e ponto final.

Se o pronome-sujeito não existe, não existe também motivo nenhum para o uso do possessivo correspondente (vosso e flexões). Mesmo quando se quiser usar as formas de tratamento do tipo Vossa Excelência, Vossa Senhoria, Vossa Eminência etc., os possessivos correspondentes são seu/sua/seus/suasVossa Excelência não se envergonha de ter seu nome citado em tantas delações premiadas?”. 

Sempre que recebo mensagens do tipo “gostaríamos de poder contar com vossa presença em nosso evento”, juro que me sinto transportado no tempo, jogado dentro de uma das caravelas de Vasco da Gama a caminho da Índia!

 

  1. Não farás concordância com orações clivadas

Eu posso dizer, em tom neutro e desanimado: “Nós precisamos de pessoas assim na nossa equipe”, ou então, num arroubo de entusiasmo: É de pessoas assim que nós precisamos na nossa equipe”. Essa estrutura ser […] que constitui uma oração clivada, do verbo “clivar”, que significa “fragmentar, partir, separar”. É uma forma de dar ênfase ao enunciado. Essa oração clivada compartilha uma propriedade com o trata-se de que a gente viu mais acima: ela está sempre e unicamente no singular quando o verbo ser é seguido de uma preposição.

Veja a diferença: São pessoas assim que eu queria na nossa equipe”. O verbo querer é transitivo direto, não rege preposição, de modo que “pessoas”, aqui, é o sujeito de são.

Mas se o verbo for transitivo indireto, ou seja, se ele reger preposição, não será possível fazer concordância, porque o que vem depois é complemento oblíquo: precisamos de pessoas assim  de pessoas assim precisamos  de pessoas assim é que precisamos  é de pessoas assim que precisamos.

Por excesso de zelo gramatical (ou seja: por hipercorreção), muitas pessoas querem fazer uma concordância entre esse verbo ser e o elemento que vem depois, na oração que sofreu clivagem: “São de pessoas assim que precisamos na nossa equipe”. Só que, repito, esse elemento que vem depois da preposição é um complemento oblíquo (se você aprendeu que é objeto indireto, tudo bem, mas a teoria linguística contemporânea não aceita essa classificação), e a preposição barra qualquer concordância possível.

 

  1. Não analisarás o/a/os/as como sujeito

Uma coisa que podemos afirmar com absoluta paz de espírito, sem medo de cometer exagero, é que os pronomes oblíquos o/a/os/as não fazem parte da língua materna da população brasileira. Nós só entramos em contato com eles por meio do letramento escolar: é na escola, quando aprendemos a ler e a escrever, que descobrimos que eles existem. O modo mais eficaz de comprovar isso é ouvindo a fala das crianças que ainda não frequentam o ambiente escolar ou a das pessoas analfabetas. As crianças nunca usam esses pronomes porque eles não ocorrem na fala normal de seus familiares e outros membros de sua comunidade, ou seja, as crianças não adquirem esses pronomes quando adquirem a língua. Os analfabetos, claro, porque não sabem ler e escrever, e o/a/os/as estão restritos à escrita monitorada ou à fala monitorada, quase sempre baseada em algo escrito.

Por causa desse caráter de “corpo estranho” no organismo da língua é que muita gente apresenta dificuldade na hora de empregar esses pronomes. Eles só podem exercer a função de objeto direto“A impopularidade absoluta do presidente em nada o afeta, já que ele não tem nenhum compromisso com a sociedade, mas só com a máfia que colocou no poder e manipula a seu bel-prazer”.

Tenho encontrado, no entanto, muitas ocorrências desses pronomes no plural analisados equivocadamente como sujeitos da oração, por exemplo (resenha de um filme): “Os três amigos então têm que fugir de um lobisomem que os perseguiam”. A forma pluralizada do pronome os levou a pessoa a usar o verbo no plural. No entanto, o sujeito é “um lobisomem”, de modo que o lobisomem perseguia os três amigos  o lobisomem os perseguia. Muito cuidado então para não cair na hiperconcordância!

  1. Não usarás artigo definido depois de cujo

Tudo o que foi dito acima sobre os oblíquos de 3a pessoa se aplica, sem tirar nem pôr, ao pronome cujo. Ele não pertence à nossa língua materna, depende da escolarização para entrar nos hábitos linguísticos das pessoas (quando entra!).

O fato é que, se você quer usar cujo, fique à vontade: ele de fato torna o texto mais dinâmico, evita repetições etc. Mas atenção: é errado escrever “um país cujo o governo atual surgiu de um golpe contra a democracia”. Que foi golpe, até as samambaias de plástico sabem, mas nada de artigo depois do cujo!

 

  1. Não confundirás infinitivo com verbo conjugado

No português brasileiro, os muitos sons que são escritos com a letra R tendem a desaparecer quando ocorrem no final da palavra, um processo fonético que recebe o nome técnico de apócope. Na fala mais espontânea, dizemos “amô”, “professô”, “flô” etc. Esse fenômeno atinge com mais força os infinitivos verbais: “falá”, “dizê”, “dormi”, “pô” etc. Com isso, os verbos da 3a conjugação acabam tendo seus infinitivos pronunciados da mesma forma que a 1a pessoa do pretérito perfeito. Em lugar, por exemplo, de sair/saí, pronunciamos com mais frequência as duas formas como “saí”: “Eu não queria [saí] da reunião; só [saí] porque a diretora insistiu”.

Outros verbos que também passam por essa mudança são ver/vêler/lê, estar/estádar/dá entre outros. O resultado é que, na hora de escrever, muitas pessoas se confundem, trocam o infinitivo pelo verbo conjugado ou vice-versa.

É preciso então tomar muito cuidado: “Eu gosto muito de lê ler”; “ainda não corrigir corrigi os trabalhos dos alunos”; “assim não dar !”.

 

  1. Não farás ênclise a particípio passado

Uma das maiores provas da persistência irracional de dogmas gramaticais sem fundamento na cultura linguística brasileira é a arquifamigerada colocação pronominal. Só existe uma regra, uma única regra que governa a nossa colocação pronominal: a próclise ao verbo principal. Nossa tradição gramatical, no entanto, insiste em enumerar dezenas de regras, sub-regras e sub-sub-regras para o uso “correto” dos pronomes oblíquos, como se estivéssemos em Lisboa no século XIX. O resultado é que, no cabo de guerra entre a intuição gramatical legítima da pessoa e as prescrições sem fundamento da tradição normativa, a pobre criatura se vê tontinha, sem saber para onde ir e… erra.

Como a ênclise, isto é, a colocação dos pronomes depois do verbo, é o uso menos natural e espontâneo, muita gente acha que só a ênclise é certa e a próclise é sempre e invariavelmente errada. Daí resultam usos que não correspondem nem à gramática real do português brasileiro nem à prescrição tradicional, como a ênclise depois de negação (“não conhecia-o”).

A apoteose da hipercorreção se dá quando as pessoas fazem a ênclise aos particípios passados, uma colocação totalmente antinatural, contraintuitiva, jamais ocorrente na fala, além de ser, claro, vetada pela tradição normativa. Recentemente, num texto muito interessante sobre questões raciais, encontrei “tinham feito-os dar voltas e voltas” e “separado-os em lotes”. Hipercorreto à 13potência! Bastava ter escrito “[os traficantes] os tinham feito dar voltas e voltas” e “os tinham separado em lotes”. Eu, por mim, escreveria (como escrevo normalmente) “tinham feito eles dar voltas e voltas” e “separado eles em lotes”, mas já que os oblíquos o/a/os/as ainda estão por aí, vamos usá-los. O que não é nem português brasileiro, nem português europeu, nem padrão normativo é “feito-os” e “separado-os”. Se quiser se juntar à nossa luta, use a próclise sempre, principalmente em início absoluto de frase: é uma militância em favor da nossa língua e contra os fanatismos gramatiqueiros sem fundamento! Me ajude nessa!

 

+1. Não usarás mesóclise

Faz tempo que mesóclise é uma coisa ridícula. Nem a imprensa golpista admite ela em seus jornais moribundos. E agora que virou marca registrada do temerário, usar essa geringonça pode ser visto como adesão a um projeto político reacionário, entreguista e corrupto. 

#prontofalei!